Wednesday, October 8, 2014

Há 66 anos — a televisão no telefone é já um facto

No primeiro número da  revista portuguesa de divulgação científica Átomo, ciência e técnica para todos, de 20 de Janeiro de 1948, pode ler-se esta interessante  notícia :
Falar a grandes distâncias, em perfeitas condições de audição, através de mares e continentes, com qualquer tempo e qualquer hora — telefonar, em suma — já era uma grande maravilha dos tempos modernos. Era pouco, porém, para o homem de hoje que quer sempre mais e mais. Era preciso conseguir que os interlocutores se vissem também, o que, para determinados estados de alma, seria coisa do maior interesse. O namoro telefónico, por exemplo, ganhará em facilidade e em comodidade, mas perderá o encanto que Romeu e Julieta conheceram e até a graça do “gargarejo”, clássico entre nós. Esta nova invenção resolve tudo. Os interlocutores podem ver-se um ao outro. Na gravura a imagem da pessoa com quem se fala aparece no pequeno rectângulo indicado pela seta. Está a telefonar P. Zakharov, técnico de televisão, que inventou esta nova maravilha.
Quem não conhece este pequeno prodígio tecnológico que hoje se chama Skype ou FaceTime? Não esqueçam os jovens que, há muitos anos, os seus avós foram os pioneiros no desenvolvimento desta forma de comunicação ...

Tuesday, August 19, 2014

O Mosquito

Em tempo de férias, no campo ou na praia, o mosquito costuma incomodar mais. A repulsa que sentimos pelos mosquitos não é uma atitude dos tempos modernos. Tão incómodo e invulnerável foi sempre o temível insecto, que já na Antiguidade lhe era reconhecido um lugar de destaque na obra da criação. De acordo com João Rodrigues Chaves — um autor do século XVIII —, o grande naturalista Plínio o Velho (23-79)
escolheo, para representar a grandeza da natureza, a parvidade de hum mosquito; porque observamos, que mais nos incommoda a sua pequenhez, e a de outras sevandijas , que a ferocidade dos leoens, e tigres. Dos insultos destes se livraõ os homens retirando-se, e ainda procurando-os nas suas cavernas com os meyos considerados, e executados, evitando o damno com a agilidade, e com a industria: dos daquelle se naõ izenta o mais recondito gabinete; porque ahi com a sua turculenta vôz, e mayor que a sua proporçaõ, e com a espada feita da sua lança, sempre insaciavel de sangue, e singularmente humano, nos intima a guerra, cantando comummente a victoria.
É difícil encontrar uma descrição mais realista do insecto que zumbe e ferra no mais precavido dos humanos! Mosquitos se poderiam chamar alguns políticos que ferram constantemente, embora o façam apenas nos mais vulneráveis e fracos. A degenerescência já passou por eles e só podem representar a “pequenez” da natureza humana! ...

Saturday, May 31, 2014

O Silêncio é Oiro

Finalmente alguns exibicionistas e palradores das redes sociais chegaram à conclusão que se expuseram ou falaram demais, e agora pretendem que os seus excessos sejam urgentemente apagados, porque prejudicam a sua imagem...
Ora a consciência dos limites do que se deve mostrar e dizer deveria ter sido adquirida durante o período de educação e formação da personalidade e não é certamente o “apagão” que vai dar aos “arrependidos” a seriedade moral que agora pretendem mostrar.
Desde há milénios que o silêncio foi considerado uma virtude de qualquer bom cidadão. Os egípcios “pintavam o seu Deus [Horus] com o dedo na boca, denotando o segredo e o silêncio que cada um havia de guardar”. Os gregos e romanos chamaram-lhe Harpócrates.
Vejamos o que disseram, a propósito do silêncio, algumas figuras históricas que nunca tiverem que  recorrer ao apagão para atingirem a imortalidade.
Eurípedes — “O silêncio é cofre e custódia da segurança, e por isso se diz  que mais seguro vive o mudo que o linguareiro”.
Séneca — “É loucura querer que um segredo não seja descoberto por aquele a quem foi antes revelado. Como quem diz: tu não pudeste guardar o teu segredo, e queres que outro o guarde? Não acredites.” “Há coisas que vale mais calar do que dizer com falta de vergonha.”
Pitacus — “O que quiseres fazer não o descubras porque, se o fizeres, serás depois escarnecido.” “Quem não sabe calar, tão pouco saberá falar.”
Plínio — “Não é de menos sábio e orador o saber calar do que o saber falar.”
Peristrato — “Quem descobre o seu segredo, vende a sua liberdade.”
Stobeus —  “O prémio do silêncio é a segurança do perigo.”
Plutarco — “Para os que falam pouco, poucas leis são necessárias.” “O néscio jamais deixa de falar, nem tão pouco é sábio o que não sabe calar.”
S. Bernardo — “O varão discreto deve guardar esta regra: o meu segredo é para mim.”
S. Crisóstomo — “Aquele que quiser vingar-se de seu inimigo, cale.”
S. João Clímaco —  “O silêncio de Cristo Redentor nosso colocou admiração e reverência a Pilatos que o julgava.”

“Perguntando uma vez Hisopo ao sábio Chilo que coisa era mais difícil da fazer: respondeu que o saber e guardar o segredo. Porque do não haver silêncio, não pode haver liberdade.”

Tuesday, April 22, 2014

Os economistas da austeridade portugueses desconhecem as potencialidades da ciência

No programa Olhos nos Olhos da TVI 24 de 2ª feira — a quatro dias da comemoração do 40º aniversário do 25 de Abril —  foi confrangedor  ouvir certas afirmações de Medina Carreira, um ilustre representante dos economistas da austeridade, em presença do seu interlocutor Carlos Fiolhais, um cientista convidado para o programa.
Nesta discussão, estiveram em confronto duas concepções de desenvolvimento para um país que Medina Carreira classificou de “pelintra”. Com a desgastada justificação da falta de dinheiro, este austero comentador defendeu que o orçamento do Estado para as Universidades e para a Ciência devia ser reduzido. Carlos Fiolhais argumentou que é por meio da ciência que se poderá fazer o desenvolvimento económico e social do País, e, portanto, o orçamento deveria ser aumentado pelo menos ao nível da média europeia. Argumentou o primeiro que há doutores a mais em Portugal, que não têm emprego e que, portanto, o dinheiro gasto na sua formação tinha sido um desperdício; o segundo contestou, afirmando que, pelo contrário, há doutores a menos e que o conhecimento é o meio de o País se desenvolver.
Está enganado quem pensa que esta discussão é nova e que foi causada pela crise. Em Portugal, houve sempre quem julgasse que a ciência é uma iguaria que não é para a boca — nem é, sequer,  do gosto — dos portugueses, e sempre houve também muitos portugueses ilustres que pensaram o contrário.
Salazar entendia que Portugal se devia contentar com a sua pobreza e acabou por sanear muitos cientistas das universidades portuguesas. Marcelo Caetano encarava a ciência como recurso político, ao afirmar que “no Ministério da Educação Nacional, a investigação científica pode, na ordem das preocupações, ocupar o quarto, o quinto, o sexto lugar; no Ministério das Colónias trata-se de uma preocupação de primeiro plano.”
Há ainda hoje quem não entenda que o atraso nacional se deve à nossa crónica ignorância das letras e das ciências; que a revolução industrial do século XIX não chegou a Portugal por este motivo; que a revolução da informação do século XXI não se fez em Portugal pela mesma razão; que a ciência deve ser encarada como um infraestrutura de desenvolvimento económico e social, como acontece, aliás, em todos os países desenvolvidos. Medina Carreira acha que a ciência não deve ser financiada simplesmente porque não há dinheiro! ... Nesta perspectiva, como estamos cada vez mais pobres, a ciência nacional terá à sua frente um futuro brilhante e, com ela, a vida dos portugueses.
Todos deviam conhecer um bom exemplo histórico vindo da Alemanha — um país que os economistas da austeridade tanto louvam pela política europeia que desenvolve em seu benefício e proveito. Mal terminou a II Guerra Mundial, o governo alemão, com a ajuda dos vencedores — diga-se de passagem — começou a reconstrução do país. Com infraestruturas totalmente destroçadas, uma população pobre e doente, sem homens para trabalhar, qual foi a prioridade para a reconstrução alemã? — O fomento da investigação científica e a reforma das universidades que tão mal tratadas tinham sido durante o regime nazi. O lema adoptado foi “pôr a ciência ao alcance do povo e levar a ciência alemã, depois da derrota, a tornar-se a primeira ciência do mundo.” Em poucos anos a Alemanha adquiriu, pelo menos em parte, o nível de desenvolvimento e bem estar a que o povo aspirava. Actualmente, os alemães são considerados um povo exemplar, têm muitos doutores e até estão dispostos a ajudar Portugal, dando emprego aos engenheiros e doutores que nos sobram.
Senhores governantes, se não são capazes de bem gerir o País, deem ao menos  aos portugueses as ferramentas intelectuais para que possam inovar e progredir. Os que não couberem nesta pequenina terra, neste país “pelintra” da Europa, poderão ao menos contribuir para o progresso das outras nações como a Alemanha.

Monday, February 24, 2014

As torturas do açúcar

Quando tanto se diz sobre os inconvenientes do consumo excessivo do açúcar é bom lembrar que, noutras épocas, este produto não só era raro e caro mas também era considerado um bendição para a humanidade. O processo de preparação do açúcar nos engenhos brasileiros foi  descrito de forma pitoresca pelo padre jesuíta italiano André João Antonii, no Cap. XII da sua obra Cultura e Opulencia do Brazil (1711):
É reparo singular dos que contemplam as cousas naturaes, ver que as que são de maior proveito ao genero humano não se reduzem á sua perfeição sem passarem primeiro por notaveis apertos: e isto se vê bem na Europa no panno de linho, no pão, no azeite e no vinho, fructos da terra tão necessarios; enterrados, arrastados, pizados, espremidos, e moidos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do assucar, o qual desde o primeiro instante de se plantar, até chegar ás mezas, e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de taes e tantos martyrios, que os que inventaram os tyrannos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao imperio do Creador, deu liberalmente canna, para regalar com a sua doçura aos paladares do homem; estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma canna, com seus artificios, mais de cem instrumentos, para lhe multiplicarem tormentos e penas.
Por isso primeiramente fazem em pedaços as que plantam, e as sepultam assim cortadas na terra. Mas ellas, tornando logo quasi milagrosamente a ressuscitar, o que não padecem dos que as vêem sahir com novo alento com novo alento, e vigor? Já abocanhadas de vários animaes; já pizadas das bestas; já derrubadas do vento; e enfim descabeçadas e cortadas com fouces. Sahem do cannaveal amarradas; e oh quantas vezes antes de sahirem d’ahi, são vendidas! Levam-se assim presas, ou nos carros, ou nos barcos á vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus que vão algemados para a cadeia, ou para o logar de supplicio padecendo em si confusão, e dando a muitos terror. Chegadas á moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substancia? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor sahiu de suas veias, e quanta substância tinham nos ossos; tratea-se, e suspende-se na guinda; vai a ferver nas caldeiras, borrifado para maior pena dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, para fartar ás bestas e aos porcos; sahe do parol escumando, e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando, e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por assadores, o batem com batedeiras, experimentando elle de taxo em taxo o fogo mais vehemente; ás vezes quasi queimado; e ás vezes dasafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas; multiplica-se a agitação com as espatulas; deixa-se esfriar como morto nas fôrmas; leva-se para a casa de purgar sem terem contra elle um mínimo indício de crime; e n’ella chora furado, e ferido, a sua tão malograda doçura. Aqui dão-lhe com barro na cara; e, para maior ludibrio, até as escravas lhe botam sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lagrimas por tantos rios, quantas são as bicas que as recebem: e tantas são ellas, que bastam para encher tanques profundos. Oh crueldade nunca vista! As mesmas lagrimas do innocente se põem a ferver, e a bater de novo nos taxos; as mesmas lagrimas se destillam á força do fogo em alambique; e quando mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sahe d’esta sorte do purgatorio, e do carcere, tão alvo, como innocente; e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhes cortem os pés com facões; e estas, não contentes de lh’os cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhes fazer os mesmos pés em migalhas. D’ahi passa ao ultimo theatro de seus tormentos, que é outro balcão maior e mais alto; aonde exposto a quem o queira maltratar, experimenta o furor de toda a gente sentida, e enfadada do muito que trabalhou andando atraz d’elle; e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes, quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos gravissimos, assim como não tem conta, assim não ha quem possa bastantemente pondera-los, ou descreve-los. Cuidava eu, que, depois de reduzido elle a este estado tão lastimoso, o deixassem; mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pizarem com pilões, nem de lhe darem na cara, já feita, com um páu. Pregam-no finalmente, e marcam com fogo o sepulchro, em que jaz: e assim pregado, e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido, e revendido, preso, confiscado e arrastado; se se livrar das prisões do porto, não se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre christãos, como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E, ainda assim, sempre doce, e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saude nas mesinhas aos enfermos, e grandes lucros ao senhor do engenho e aos lavradores, que o perseguiram, e aos mercadores que o compraram, e o levaram degradado, nos portos; e muito maiores emolumentos á fazenda real nas alfandegas.               
(Revista de Chimica Pura e Applicada, Ano 10, Vol. X, 1914, pp. 414-416)