Se a legislação é a imagem de um país, então Portugal parece ser o país das empreitadas. De facto, quando olhamos para as nossas leis ─ que o Presidente da República já designou de medíocres ─ todos ficamos desconfiados quando nos dizem o contrário. Há um ministro que nos afirmou ser Portugal um país de ciência, outro jurou-nos que Portugal exportava computadores fabricados no país e um outro acaba de nos prometer que vamos vender tecnologia de ponta a países de terceiro mundo. Mas ninguém acredita nestes discursos propagandísticos. A legislação convence-nos a todos, excepto aos ministros, que a construção civil é a única actividade existente no país pois é a única que merece ser legalmente regulamentada.
As regras de aquisição de equipamentos e serviços pelo Estado para todas as outras actividades, incluindo a investigação científica, são as mesmas que se aplicam à construção civil. Noutras palavras, tudo se resume a empreiteiros e a empreitadas. De acordo com a actual lei, o processo burocrático para a reparação de um equipamento científico superior a 5 mil euros deve ser o mesmo que é aplicado para a reparação de uma rua ou de uma estrada. Todos os “papéis” e os papéis que se seguem devem ser escritos em Português porque se supõe ─ creio eu ─ que é a única língua que os empreiteiros compreendem.
Os menos atentos poderão até pensar que uma tal importância dada à língua portuguesa será uma forma de promoção da língua no país e no estrangeiro. Compensar-se-ia desta forma eficaz e barata a pouca actividade do Instituto de Camões que, segundo parece, gastava demasiado dinheiro.
Deixemos porém a língua, que tão maltratada tem sido, e voltemos às empreitadas da investigação científica. Tomemos como exemplo o caso de um determinado equipamento científico ─ produzido e comercializado por uma empresa estrangeira ─ que avariou.
Para cumprir a lei, a primeira coisa a fazer é detectar a natureza da avaria, identificar as partes que devem ser substituídas e descrever o tipo de trabalho a ser executado. Esta primeira tarefa poderá ser apenas feita com competência pela empresa que forneceu o equipamento, mas enquanto não ganhar a adjudicação e não souber Português não poderá fazê-lo sem que incorra numa ilegalidade. Como se pagariam traduções, transportes e outras despesas sem primeiro se fazer a adjudicação? Com a lista fantasma assim “preparada” inicia-se a escrita do caderno de encargos, onde devem constar os critérios de adjudicação e onde devem ser identificadas as empresas a consultar. Aconselha-se a incluir outros detalhes de difícil cumprimento, como sejam os prazos de pagamento, para que o caderno fantasma seja um verdadeiro documento oficial.
Fica assim “concluída” a primeira parte do processo de reparação à qual muitas vezes não se segue mais nenhum. Muitas vezes não significa sempre... porque existe o famoso “desenrascanço” nacional capaz de “contornar” a legislação obtusa que os senhores deputados e governantes teimam em continuar a criar.
Talvez fosse elucidativo saber se tais senhores costumam reparar o seu leitor de DVDs Philips nos representantes da Sony, e, no caso de alguma vez o terem tentado fazer, qual o resposta que receberam. Não nego que esses senhores possam ter um centro multi-serviços no seu bairro. Ficar-lhes-ia muito grato se me indicassem um para reparar o laser e o espectrofotómetro que tenho avariados. Mas, por favor, não me tentem impingir o picheleiro ou o trolha que costumam levar lá a casa a mando do empreiteiro amigo.
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