Friday, July 25, 2008

O elogio da Matemática


Numa época em que tanto se fala da Matemática é bom lembrar que a utilidade desta ciência foi desde sempre reconhecida em todas as actividades humanas, quer materiais quer espirituais. Quem não conhece a famosa frase que Platão mandou colocar à entrada da sua Academia: “Não entre aqui quem não souber Matemática”.
O ilustre D. Frei Manuel de Cenáculo Vilas-Boas (1724-1814) ─ homem de confiança do Marquês de Pombal, bispo de Beja e arcebispo de Évora, e defensor da cultura humanística e das ciências modernas ─ fundou uma Aula de Matemática em Beja para a preparação dos ordenandos do seu bispado. Francisco de Mello de Vasconcellos e Lima fez o discurso de abertura da referida aula em Outubro de 1786.
Quando se refere ao “objecto da Mathematica, suas gerais divisões, e origem” escreve o seguinte:

He o objecto da Mathematica a quantidade em geral, enquanto se póde augmentar, ou diminuir. Debaixo do nome geral de quantidade podemos sem temor algum considerar muitas outras quantidades particulares, como he o numero, comprimento, largura, profundidade, posições, e medidas das differentes partes da extensão, leis do movimento, a luz, e corpos directamente visiveis pela reflexão, refracção, desenho, sons, e melodias, esfera do Universo, sua estrutura e figura, e grandeza da terra, tempos, Sol, instrumentos, e fogos bellicos, fortificações, edificios, embarcações, navegação &c; e conceber por isso a Mathematica, como dividida em Arithmetica, Algebra, Cálculo, Geometria, Stereometria, Trigionometra, Mecanica, v. g. a Statica, Dynamica, Hydrostatica, Hydraulica, Hydrodinamica, Herometria, Optica, Catoptrica, Dioptrica, Perspectiva, Musica, Astronomia, Geografia, Chronologia, Gnomonica, Artelharia, Pyrotechnia, Arquitectura Militar, Civil, Naval, Arte de navegar, &c.

Dificilmente encontraremos uma ciência natural, cultivada no tempo de Vasconcellos e Lima, que não seja abrangida pela Mathematica, em sentido lato. Nessa época, numa perspectiva menos abrangente, denominavam-se Mathematicas puras a Aritmética e a Geometria, e Mathematicas mixtas a Música e a Astronomia.
No que respeita às ciências citadas no texto acima transcrito ─ quer as integremos ou não nas matemáticas ─ ninguém duvida actualmente a grande utilidade que a Matemática tem no estudo e prática dessas ciências, incluindo naturalmente a Física pois, segundo o orador:

Ninguem poderá já mais duvidar da intima união , que tem a Fysica com a Mathematica, ou ella seja considerada em geral, seja em particular, seja especulativa, ou experimental […] Não observamos por ventura, que a Fysica, especialmente a experimental, se perde de dia em dia, e desgraçadamente se transforma, quando não escóra sobre a Mathematica? […]

Que deveremos pensar, porém, da importância da Matemática noutras “ciências” menos quantificáveis? Vejamos o que diz Vasconcellos e Lima sobre este assunto:

Muito depende da Mathematica a Medicina, especialmente a Filosofia do corpo humano, a chamada Fysiologia; a Pathologia, quanto ás causas, e symptomas das doenças; e até a mesma prática de Medicina. […]
He hoje tão conhecida entre nós a grande dependencia, que da Arithmetica, Geometria, e Mecânica tem a Cyrurgia, Arte obstetricia, Ligaduras, Chymica, Mineralogia, Geometria subterranea, Fysiologia das plantas, e animaes, Agricultura, Commercio, Navegação, Pintura, Oratoria, Arte Militar, &c. que parece desnecessario excitar provas para o confirmar […]

Que fora da Filosofia sem Mathematica? Que he pois, e que póde a Lógica sem Arithmetica, sem Geometria? Em lhe faltando estas, andará ella sempre ás quedas, e já mais poderá dar hum prompto, e seguro passo na prática […]

De quanto depende a Metafysica da Mathematica, julgo não haverá quem duvide. […]

Grande he sem dúvida a precisão, que tem da Mathematica a Theologia. Não depende pois esta da Filosofia, que nada vale sem Mathematica? Quem he senão a Mathematica, que encaminha o Theologo a hum firmissimo conhecimento de Deos pela natureza […]

Não menos necessaria he a Mathematica á recta interpretação da Sagrada Escritura. […]

Apparece-nos as mais das vezes a Historia precisada de Mathematica. Confuso, e imperceptivel cáos seria ella sem Arithmetica, Geografia, e Chronologia […]

A alma, que anda exercitada no estudo das mathematicas, fica no costume de bem cogitar, e na obrigação de ser prudente, e sabia. Daqui resulta a grande necessidade, que dellas tem os Legisladores, Principes, Magistrados, &c. […]

Nem he muito que seja util, e necessaria a Mathematica á recta instituição, e bom governo da Republica, tendo a natureza do Direito, e muito principalmente do Civil, a sua origem na natureza do homem, commercio da alma com o corpo, Filosofia, Historia, &c. que tanto della dependem.[…]

Sendo com effeito o principal objecto desta Abertura a instrucção dos Ordinandos, parece não dever ficar em silencio a necessidade, que da Mathematica tem o Ecclesiastico […]

E para concluir, remata o orador na sua apologia da Matemática:

Para qualquer das partes em fim, que lançardes as vistas, achareis, Senhores, a utilidade, e necessidade desta tão recommendada Sciencia, não sómente pela recta interpretação da Sagrada Escritura, pela prática do entendimento humano, e solido conhecimento da natureza, e de todas as Sciencias, e Artes, mas ainda pelo grande uso, que della se faz em toda a vida humana. […]

Não será este discurso suficientemente convincente para quem tem responsabilidades na educação das nossas crianças e jovens? Ensinem-se as Matemáticas a todos e não se pretenda fazer querer que todos as sabem sem realmente as terem aprendido …

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