Wednesday, February 6, 2008

O Pe. António Vieira e a Luz


Há 400 anos, nascia em Lisboa o Pe. António Vieira e despontava para lá dos Pirinéus uma nova filosofia que consigo transportava as sementes da ciência moderna. O famoso missionário dos índios foi contemporâneo deste movimento intelectual europeu e podemos interrogar-nos se nele participou ou se foi por ele influenciado. Uma análise, embora superficial, dos seus escritos leva-nos a concluir que nem uma coisa nem outra ─ as ideias da nova filosofia não faziam parte nem das preocupações nem das preferências deste ilustre português seiscentista.
Vejamos o que ele afirmava sobre a luz, uma importante entidade física, que, por iniciativa de Descartes (1596-1650) e dos seus sequazes, começava a libertar-se das amarras, quase metafísicas, que a escolástica lhe impusera durante séculos.

No “Sermam do Nacimento da Virgem Maria, Debaxo da Inuocaçaõ de N. Senhora da Luz”, pregado em S. Luis do Maranhão no ano de 1657, o Pe. António Vieira segue as concepções escolásticas sobre a luz, relembra a origem divina desta “qualidade” e toma partido na polémica teológica envolvendo a criação da luz e do Sol:

No primeyro dia do mundo creou Deos a Luz, no quarto dia creou o Sol. Sobre estes dous dias, & estas duas creaçoens há grande batalha entre os Doutores: porque se o Sol he a fonte da luz, que luz he esta, que foy creada antes do Sol? Ou he a mesma luz do Sol, ou he outra luz differente? Se he a mesma; porque não foy creada no mesmo dia? & se he diferente; que luz he, ou que luz pode hauer differente da luz do Sol? Santo Thomas, & outros com elle o sentir mays comum dos Theologos, resolue que a luz, que Deos creou o primeyro dia, foy a mesma luz, de que formou o Sol ao dia quarto. […] No prymeiro dia foy creado o Sol informe; no quarto dia foy creado o Sol formado. São os termos de que vsa Santo Thomas.

Numa tentativa de estabelecer uma distinção entre o Sol e a luz, o Pe. António Vieira exprimiu-se desta forma:

O Sol (como dizem os Filosofos) ou verdadeyramente he fogo, ou de natureza muy semelhante ao fogo, elemento terriuel, brauo, indomito, abrazador, executivo, & consumidor de tudo. Pelo contrario a luz em sua pureza, he huma calidade branda, suaue, amiga, enfim creada para cópanheyra, & instrumento da vista, sem offensa dos olhos; que saõ em toda a organizaçaõ do corpo humano a parte mays humana, mays delicada, & mays mimosa. Filosofos houve, que pela sutileza, & facilidade da luz, chegàraõ a cuydar que era espirito, & naõ corpo. Mas porque a Filosofia humana ainda naõ tem alcançado perfeytamente a differença da luz ao Sol, valhamonos da ciencia dos Anjos.

Quanto à velocidade da luz, o Pe. António Vieira defendia a visão escolástica (e cartesiana) de que a luz se estabelecia (se propagava) instantaneamente. Como era seu timbre exprimiu esta ideia de forma clara e graciosa:

O Sol, como dizem os Astrologos, corre em cada hora trezentas, & oytenta mil legoas. Grande correr! Mas toda esta pressa, & ligeyreza do Sol em comparação da luz, saõ vagares: o Sol faz seo curso em horas, em dias, em annos, em seculos: a luz sempre em hum instante.

Em defesa da natureza pura e perfeita da luz ─ não foi o próprio Deus que afirmou: “Eu sou a verdade, a luz e a vida”? ─ o Pe. António Vieira usou de todos os argumentos da sua apuradíssima retórica:

Porque estimão os homens o ouro, & a prata, mays que os outros metaes? Porque tem alguma cousa de luz. Porque estimão os diamantes, & as pedras preciosa, mays que as outras pedras? Porque tem alguma cousa de luz. Porque estimão mays as sedas, que as lans? Porque tem algúa cousa de luz. Pela luz aualião os homens a estimação das cousas: & aualião bem; porque quanto mays tem de luz, mais tem de perfeyção.

No citado sermão, pregado sob a invocação de Nossa Senhora da Luz, o ilustre orador não poderia naturalmente deixar de envolver a Senhora na mais pura e celestial atmosfera luminosa e de nos aconselhar a tornarmo-nos filhos da luz:

Aquella Mulher prodigiosa do Apocalypse, que S. Ioão vio com as azas estendidas, toda a Igreja reconhece, que era a Virgem Maria debaxo do nome, & inuocação de Senhora da Luz. A mesma luz o dizia, & o mostraua, que da peanha até a coroa toda era luzes: a peanha Lua, o vestido Sol, a coroa Estrellas, toda luzes, & toda Luz. E poes a Senhora da Luz esta com as azas abertas, metamonos debaxo dellas, & muyto dentro nelas, para que sejamos filhos da luz.

Como é delicioso ler o velho mas lúcido Pe. António Vieira, no dia em que faz 400 anos!...

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