Sunday, January 27, 2008

O excêntrico conselheiro Gama Machado


José Joaquim Gama Machado (1775-1861), fidalgo da Casa Real, comendador da Ordem de Cristo, conselheiro de Legação de Portugal em Paris e sócio correspondente da Academia Real de Ciências de Lisboa foi uma excêntrica figura portuguesa, que viveu em Paris desde 1806 até à sua morte. A excentricidade deste homem, celebrada na obra Les Excentriques de Champfleury, revelou-se na sua forma de vida, na obra que escreveu e publicou e no conteúdo do seu testamento.
Gama Machado dedicou-se com paixão violenta ao estudo da história natural, uma actividade que o absorveu totalmente nos últimos anos da sua vida, ao ponto de se levantarem justas dúvidas sobre a integridade das suas capacidades mentais. Com o objectivo de satisfazer a enorme curiosidade e de ter sempre à mão os objectos dos seus estudos, este ilustre português vivia rodeado de pássaros vivos das mais variadas espécies, sendo alguns de grande raridade. Possuía, além disso, “aves e outros animais ampalhados, caixas com borboletas e outros insectos” provenientes de todas as partes do mundo.
Segundo as suas próprias palavras, o fim essencial do seu trabalho era:
Demonstrar duma maneira incontestável, para as pessoas mesmo as menos familiarizadas com o estudo das sciências naturais, que aí onde se encontrem formas, robes [roupagens] e côres idênticas, na imensa série dos seres organizados, aí se encontrarão também as mesmas conformidades de instintos, de habitos e costumes.
Noutras palavras, Gama Machado propunha-se estabelecer as leis gerais de semelhanças comportamentais entre animais e o próprio homem, com base em semelhanças na morfologia exterior desses seres animados. Expôs as sua originais teorias na obra Théorie des Ressemblances (1831-1858), constituída por 4 grossos volumes e mandada imprimir à sua custa. Nela cita obras de autores famosos como o frenologista Franz Gall (1758-1828), o naturalista Charles Bonnet (1720-1793), e, principalmente, o filósofo natural renascentista Giovanni Battista della Porta (1535?-1615) ─ autor de De Humana Physiognomonia (1586), Phytognomoniae (1591) e Coelestis Physiognomoniae (1601) ─ o qual parece ter sido seu grande inspirador e mestre.
Em 1926, o médico Alberto Pessoa (1883-1942) escreveu um extenso artigo, na Revista da Universidade de Coimbra, onde fez o relato da vida e obra de J. J. da Gama Machado e onde afirma que “o grande livro do nosso José Joaquim da Gama Machado é, e sempre foi, uma das mais extraordinárias colecções de disparates que têm aparecido à superfície da terra” e que “o livro do comendador não tem pés nem cabeça”.
Sobre a recepção que esta obra teve em Portugal, o mesmo Alberto Pessoa escreveu o seguinte:
A Academia de Sciências de Lisboa não só agradeceu por mais duma vez, em termos elogiosos, a oferta dos volumes da Théorie des Ressemblances, mas chegou mesmo a eleger o seu autor, na sessão da Assembleia de Efectivos de 4 de Fevereiro de 1853, sócio correspondente […].
O cardeal Saraiva recebeu igualmente uma cópia da Théorie, tendo agradecido ao autor por carta e onde escreveu “há muito tempo não li huma Obra, que tanto me recreasse, instruisse e illustrasse”. Este era um comentário inesperado já que o clero francês tinha criticado com muita veemência as ideias materialistas expressas nesse livro.
A biblioteca da Câmara dos Pares foi igualmente contemplada com uma cópia da Théorie, que foi aparentemente muito apreciada. A Mesa da Câmara foi encarregada de endereçar ao distinto comendador uma carta de agradecimento a qual muito o sensibilizou.
Como se explica, então, que uma obra de tão má qualidade científica e com ideias tão contrárias à religião fosse tão elogiada pela Academia de Ciências, pelo cardeal de Lisboa e pela Câmara dos Pares?
Alberto Pessoa apresenta uma justificação possível, que parece igualmente muito acertada:
O homem era rico, amável, bem relacionado, tinha amigos e parentes em altas situações. Ninguém o queria desgostar, a êle que se desfazia em amabilidades para tôda a gente. A obra tinha aspecto considerável, grande formato, óptimo papel, elegância tipográfica, magníficas estampas. Tudo isto infunde respeito. Quem recebia um volume, oferecido pelo autor, folheava-o, admirava as figuras, lia bocado aqui, bocado acolá, achava tudo muito curioso e, se não era do métier, ficava pensando que por certo lá estaria a última palavra da sciência. Os outros, os naturalistas, esses é de crer que não tomassem muito a sério as descobertas do comendador. Lá uns com os outros, sabe Deus o que diriam; mas, coitados, em público, não diziam nada, calavam-se prudentemente, bem sabiam que, se falassem, ninguém os acreditaria e que se sujeitavam a ser acusados de invejosos. Assim se criou e sòlidamente se estabeleceu uma reputação que o Parlamento, as Universidades, as Academias e os eruditos consagraram…
E talvez não seja caso único…
Alberto Pessoa conclui esta discussão com alguma graça:
A obra de Gama Machado está hoje completamente esquecida. Desconfio mesmo que fui eu a única pessoa que recentemente a leu de fio a pavio. Alguma coisa também havia de fazer um dia, que os outros não tivessem feito…
O testamento de Gama Machado (que morreu com 86 ou 87 anos) foi sendo escrito ao longo de décadas. Tinha um elevado número de correcções e aditamentos e estava cheio de incongruências e incompatibilidades. Após a sua a morte, a partilha da enorme fortuna que deixava ─ avaliada em cerca de um milhão de francos ─ teve que ser decidida em tribunal durante um julgamento que deu brado em toda a cidade de Paris. A sua colecção de pássaros foi deixada à governanta, Elisabeth Perrot, da qual tinha tido um “filho natural”. A maior parte do dinheiro foi distribuído por familiares. Alguns objectos foram doados a entidades portuguesas: à Academia de Ciências de Lisboa ─ uma colecção de aves empalhadas e desenhos originais da sua Théorie des Ressemblances ─ à Universidade de Coimbra ─ cabeças de gesso do sistema Gall, um pequeno busto do comendador, dois vasos de porcelana e dois quadros ─ e ao Príncipe Real de Portugal ─ algumas colecções de história natural (aves embalsamadas). Deixou ainda fundos destinados à divulgação da teoria das semelhanças para que pudesse ser professada em cursos no Ateneu Real de Paris, na Société des Sciences Naturelles, de que era membro, e na Academia de Ciências de Lisboa. Neste último caso, o fundo deveria ser “aplicado expressamente ao estudo dos costumes das aves de capoeira, indígenas e exóticas” e, em princípio, os cursos deveriam realizar-se em Lisboa e em Coimbra. À Academia de Ciências de Paris deixou um fundo para um “Prix da Gama Machado” destinado “à melhor memória sobre as partes coloridas dos sistemas tegumentosos dos animais ou sobre a matéria fecundante dos seres animados”, o qual, efectivamente, foi atribuído de três em três anos a vários investigadores franceses. O seu amor pelos animais tornou-se lendário e naturalmente não podia deixar de legar à Sociedade Protectora dos Animais de Paris um fundo monetário importante. Toda esta generosidade não pôde no entanto ser concretizada, porque a fortuna, embora grande, não cobria todas as despesas indicadas pelo benemérito conselheiro.
A excentricidade mais notável do testamento de Gama Machado relaciona-se no entanto com o seu funeral:
Desejo que o meu corpo seja guardado o mais tempo possível, e colocado num caixão de chumbo. O meu corpo será levado directamente ao cemitério do Pire-Lachaise: gastar-se-à o menos dinheiro possível (despesa inútil de vaidade). Tomar-se-á para modêlo do meu túmulo o que mandei elevar ao meu estorninho; esta ave, estando embalsamada, depositar-se-à o seu corpo com o meu. Este modêlo será enviado para Lisboa. Os meus cavalos acompanharão o meu entêrro sem puxar ao meu carro, o meu criado de quarto levará numa pequena gaiola uma das minhas aves favoritas. Proíbo expressamente que se convide seja quem fôr para o meu entêrro. Os meus criados acompanharão o meu corpo no meu entêrro; será o último testemunho de reconhecimento por todas as bondades que tive para com eles. […] O meu entêrro terá logar às três horas da tarde, à hora em que os corvos do Louvre têm o costume de vir procurar o seu jantar”[…]. Servir-se-ão do meu caixão que tem relação com o meu trabalho das sciências naturais. Êste caixão encontra-se em minha casa, bem como a mortalha. […] Depositar-se-ão no meu caixão as aves contidas nos quatro túmulos que ornam as minhas colecções de história natural.
Gama Machado parece ter ainda determinado que lhe metessem no caixão um volume com as obras de Lucrécio, o seu autor favorito!...

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