Muitos portugueses se têm distinguido pela sua capacidade polígrafa, isto é, por escreverem sobre os mais diversificados temas: literatura, arte, antropologia, sociologia, história, crítica e análise política; abundaram particularmente no fim do século XIX e princípios do século XX. Um desses homens foi António Cabreira (1868-1953), que teve no entanto a particularidade de se ter dedicado também à matemática. Antonio Thomaz da Guarda Cabreira de Faria e Alvellos Drago da Ponte frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, “onde se habilitou com o 2º anno de mathematica, afim de seguir para o curso de engenheiro constructor naval”. “Tendo adoecido gravemente, em 1892, foi aconselhado pelos medicos a abandonar os estudos escolares”.
A sua obra escrita impressiona pela quantidade e pela diversidade dos temas tratados. Foram notáveis a sua capacidade organizativa e os contactos sociais que soube estabelecer e cultivar: criou muitas e variadas instituições; estabeleceu relações pessoais e profissionais com muitas mais; recebeu condecorações de várias delas, criou inúmeras amizades e simpatias ao mesmo tempo que despertou “muitas invejas” e acirrou fortíssimas inimizades.
Por iniciativa própria ou dos amigos, fez a divulgação das suas obras em livros e folhetos, criando-se dele uma imagem pública de grande dinamismo e exagerado protagonismo científico-cultural. Emílio Augusto Vecchi (1854-?), um dos seus melhores amigos, publicou em 1907 Antonio Cabreira ─ noticia succinta da sua vida e obras. “Por iniciativa dos seus condiscipulos no Liceu de Lisboa, em 1888-1889” saiu em 1914 uma publicação com 680 páginas, intitulada Antonio Cabreira ─ seus serviços e consagrações, onde se descreve toda a sua obra de forma exaustiva e apologética. O Dr. António Cabreira comemorou as suas “bôdas de prata academicas” em 1922 com um discurso auto-elogioso, perante a Academia Real de Ciências de Lisboa, de que era sócio correspondente desde 1897, tendo-o publicado sob o título Discurso comemorativo das suas bôdas de prata académicas e epítome dos trabalhos apresentados na Academia das Sciencias de Lisboa. Esta comemoração terá provocado reacções menos amistosas contra o vaidoso académico, pois no “proemio” do seu livro A Pedra d’escândalo ou etiologia e cautério duma avariose mortal (1924) escreveu o seguinte:
Depois do vómito negro que certa fauna exótica teve, por ocasião das minhas bodas de prata académicas, ─ cuja celebração brilhantíssima a levou ao paroxismo da torpeza, ─ outra crise entrou ela a curtir perante os meus novos triunfos, desculpando-se, porém, das agonias com a obra de acção, visto não poder rilhar a doutrinaria. E, desde então, diversas almas castradas do sentimento português começaram a entumescer, a olhos vistos, imprimindo, já, esgares á mascara e parvoíces ao verbo. O pus não se conteve de maduro e veio rebentar, em curto intervalo de tempo, pela língua dum político e pela pena dum erudito, sem falar, já na vilanagem de carão lavado e consciência suja que aluga ou explora, por conta própria, esses dois instrumentos da Maldade Humana.
O político e “parteiro” ─ como também lhe chamava Cabreira ─, era o médico e catedrático Augusto de Vasconcelos (1867-1951); o erudito era o padre, doutor em teologia e catedrático de Letras, José Maria Rodrigues (1857-1942); a eles dedicou Cabreira a melhor da sua mais sarcástica prosa.
O denunciador da pouca qualidade dos seus trabalhos matemáticos foi Rodolfo Guimarães (1866-1918), que não ficou, igualmente, sem resposta: António Cabreira refutou um a um todos os argumentos de Guimarães em duas publicações Quelques mots sur les mathématiques en Portugal (1905) e Les Mathématiques en Portugal (1910), onde auto-elogiou a “original e importante” obra matemática que estava a realizar.
Os amigos não se esqueceram das suas “bôdas de ouro cientificas” fazendo-as coincidir com a cerimónia de inauguração de um busto de António Cabreira em Tavira, sua terra natal, no ano de 1946. Este acontecimento ocorreu na sequência de um nobre gesto de António Cabreira: a doação à Câmara Municipal tavirense do “palacete onde nasceu e passou os doirados dias da infância”. Esta doação, feita em 1944, destinava-se à instalação da biblioteca, do museu e do arquivo da sua terra. As cerimónias, cheias de pompa e circunstância, foram minuciosamente descritas numa publicação do Instituto António Cabreira intitulada António Cabreira ─ Inauguração do busto em Tavira, Ecos das bôdas de oiro cientificas, Outras manifestações de aprêço. Este livro, como muitos outros foi edição do autor.
Debrucemo-nos agora sobre a actividade científico-literária do Dr. António Cabreira. Para além das brochuras publicadas por sua conta, houve trabalhos publicados nas “principais publicações scientificas e literárias do país e nalgumas das mais importantes de Espanha, França e Alemanha, e em diversos jornais portugueses”. No Discurso Comemorativo de 1922, anteriormente referido, surgem os títulos e sumários dos seus trabalhos e na contracapa surge impressa uma tabela com a lista de assuntos e o número das publicações. Sabemos desta forma que tinha publicado na matemática: teoria dos números (5), análise algébrica, geométrica e infinitesimal (11), estática gráfica (1), geometria pura (18), geometria refractiva (1), mecânica (4), astronomia (7). Para além da matemática surgem os temas de: climatologia (1), antropologia (2), colonisação (3), seguros (4), finanças e economia pública (3), jurisprudência (7), história (31), relatórios científicos e escolares (21), arqueologia (4), política interna e externa, e orgânica política e militar (8), orgânica geral (20), romance (2) e filosofia (7). No total António Cabreira possuía, em 1922, 160 publicações, mas no ano seguinte tinha já 164 e “4 publicações seriais doutrinarias e de combate”. Em 1941 publicava a solução da quadratura do círculo em Teoria e solução da quadratura do círculo e da circulatura do quadrado: por meio da régua e do compasso (publicação do autor). Este era um problema geométrico que tinha ocupado os grandes filósofos durante dois mil e quinhentos anos, mas que nenhum conseguira resolver. Não satisfeito com tão grande feito, juntou ainda no mesmo artigo a solução da “circulatura do quadrado” (o problema inverso)…
Até à data da sua morte, em 1952, publicou muitos mais artigos, mas o que fica dito revela bem quão prolífico e polígrafo foi António Cabreira.
As suas iniciativas para a criação de instituições foram igualmente muito fecundas. Em 1923, tinha fundado “16 Institutos, visando o progresso das Sciências, a valorisação regional, o ensino gratuito, em todos os graus e de caracter comercial, colonial e militar; a propaganda da Defeza Nacional e social e a manutenção dos Principios e do culto Catolicos”. De entre eles contam-se o Real Instituto de Lisboa, a Academia de Ciências de Portugal, e vários institutos anexos a esta academia, entre os quais, o Instituto Teofiliano e o Instituto António Cabreira. Este último foi “constituído em homenagem ao seu ilustre patrono, Dr. António Cabreira; a sua acção incidia sobretudo, no estudo da sua valiosa obra e na divulgação dos seus relevantes serviços à Ciência e à Pátria”.
Com tão relevantes serviços, não faltaram a António Cabreira títulos e honras: Primeiro Secretário Perpétuo e Segundo Presidente da Academia de Ciências de Portugal; Sócio Correspondente da Academia de Ciências de Lisboa, das Academias Nacionais de História e das Ciências da Venezuela, das Academias de Ciências de Barcelona, Toulouse, Montpelier, Dijon e Nápoles, da Sociedade de Físico-Matemáticas de Kasan e do Instituto de Coimbra; Membro Honorário da Academia Estrela de Itália, da União Latino-Americana e do Instituto Grã-Ducal de Luxemburgo; Secretário da Secção de Matemáticas da Sociedade de Geografia de Lisboa; Professor de Ciências; Doutor em Matemática honoris causa pela Universidade do Arizona; Fundador e Antigo Director do Instituto Real de Lisboa; Condecorado com o Mérito de 1ª Classe do Chile e com a Medalha de Honra da Universidade de Amesterdão; Comendador da Ordem Militar de S. Tiago da Espada; Membro da Ordem de Santa Maria do Castelo; Cavaleiro da Legião de Honra; Benemérito da Instrução Nacional; Antigo Delegado da Imprensa Portuguesa aos Congressos Internacionais de Roma, Berna e Viena e, finalmente, Conde de Lagos.
As actuais “mentes brilhantes” portuguesas são pálidas anãs vermelhas, quando comparadas com este sol flamejante que foi António Cabreira… Ao contemplar os muitos planetas, sombrios e corroídos de inveja, que lhe diminuíam o brilho, chamou à sua terra, satirizando Tomás Ribeiro, “um bananal à beira mar plantado”…
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