Thursday, August 2, 2007

A riqueza ou a pobreza dos cientistas


Existe na sociedade portuguesa um preconceito segundo o qual quem trabalha com gosto não tem direito moral para exigir uma remuneração elevada. Noutras palavras, deve sentir-se feliz quem é pago para fazer o que gosta, mesmo que a recompensa do seu trabalho não atinja o nível determinado pelos critérios de valor e produtividade. Dado que determinadas actividades só podem ser eficazmente realizadas por quem tenha para elas uma marcada inclinação e gosto, todos os profissionais felizes são estigmatizados por aquele infeliz preconceito. Entre estas actividades encontra-se naturalmente a investigação científica…
A ideia do filósofo pobre, mas feliz, consolidou-se em Portugal por influência dos movimentos humanista e romântico e tem as suas raízes na Grécia Antiga, onde muito filósofos viviam totalmente desprendidos das coisas materiais. Na Nova Floresta, O Pe. Manuel Bernardes (1644-1710) discursa sobre o desapego dos bens temporais e exemplifica com a postura de um filósofo grego:

Mais he o que fez Crates Filosofo Cynico, que reduzindo todos seus bens a moeda, a lançou ao mar, dizendo: Antes que vós me afogueis, vos afogo. Se bem outros dizem, que poz o dinheiro na maõ de hum contratador com pacto, de que seus filhos fossem Filósofos, o distribuísse a pobres, porque tendo sciencia naõ lhes estava bem ter fazenda: mas se fossem idiotas, lhos restituísse, para naõ ficarem destituidos totalmente; porque naquelles termos tambem os julgava por pobres, e os preferia por filhos.

Esta posição de Crates não foi consensual entre os filósofos gregos… João de Barros (1496?-1570) na apologia da Quarta Década faz uma referência à postura filosófica de Aristóteles perante a riqueza, referência essa que foi comentada pelo Pe. Thomaz Aranha num sermão pregado em 1653 em memória do Príncipe D. Teodósio, amante da ciência e vítima da tuberculose quando tinha apenas 19 anos:

Como Aristóteles tinha experimentado, em quanto andou por casas de Principes, ser genero de catiueiro esperar suas esmolas, tratou de enriquecer muito para as não mendigar delles, & para melhor estudar; & segundo seu estado, foi tam sobejamente rico, que o tachou hum Philosopho disso, que o viera a ver a Grecia, obrigado da sua fama, ao qual elle respondeo, que nam era rico por deleitaçaõ de ter riquezas, mas porque nam queria, que ignorantes Principes fossem senhores delle por bens de Fortuna, pois elle era senhor dos mesmos Principes por dote de entendimento, & que era cousa contra natureza o ser a ignorância senhora da sciencia; & que a pobreza catiuaua a liberdade do engenho na accupação do necessario; & de se auer por maxima de prudencia, entre os prudentes, que mais conuem ter para saber, que saber para ter: trabalhou Seneca por acquirir fazenda, tanto que se escreue valer a sua sete contos, & meio de ouro da nossa moeda.

Havia, pois, na Antiguidade opiniões distintas sobre a relação que deveria existir entre a filosofia e a riqueza: uma atitude romântica perfilhada por Crates e uma postura independente e libertadora seguida por Aristóteles e Séneca. Entre estas duas posições, outras houve, mas a referida dualidade continuou ao longo dos tempos: a resignação católica contribuiu para um reforço da versão cratesiana, a reforma protestante deu alento à versão libertadora do peripatético.
Até meados do século XIX a investigação científica foi sobretudo uma actividade de amadores com bens de fortuna para a suportar, ou de alguns poucos profissionais que trabalhavam directamente nas cortes ou nas instituições apoiadas por reis, príncipes e imperadores. No século XX, a actividade científica vulgarizou-se e os cientistas começaram a ser cada vez mais dependentes dos proventos do seu trabalho especializado. A vassalagem aos “Principes”, que tanto preocupava Aristóteles, generalizou-se e a investigação científica ficou condicionada à disponibilidade financeira dos governos ou dos magnatas que acharam nela uma boa oportunidade de investimento. As baixas remunerações e a precariedade do trabalho tornaram-se comuns e perduraram com o suporte de preconceitos ético-científicos absurdos. Um famoso anatomista e embriologista americano, Franklin P. Mall (1862-1917), chegou a declarar:

Quando ouço um jovem perguntar-me se a carreira científica lhe dará compensações materiais, concluo que o jovem estará apto para todas as carreiras menos para a de investigador.

Alfredo Bensaúde tinha opinião semelhante sobre o ensino universitário ao afirmar, em 1917, que o aumento de vencimentos dos professores poderia ter como efeito piorar o ensino em vez de melhorá-lo. A razão era simples: tais aumentos poderiam atrair pessoas mais pelo dinheiro do que pela vocação.
Conveniências ou preconceitos à parte, houve sempre em Portugal quem pensasse que o trabalho científico merecia ser justamente compensado pelo seu valor tanto material como cultural. Incluíam-se neste grupo investigadores como José Antunes Serra do Centro de Estudos de Ciências Biológicas da Universidade de Coimbra que, em 1957, afirmava o seguinte:

Esta questão da paga dos cientistas e dos trabalhadores científicos em geral só será resolvida quando os dirigentes políticos e financeiros se compenetrarem do valor da ciência, isto é, quando os chamados «valores espirituais» se cotarem pelo autêntico valor que têm.

Nestes tempos de globalização, em que a importância da investigação científica é apregoada aos quatro ventos, continuamos a conviver em Portugal com a precariedade do trabalho científico. A grande percentagem dos jovens cientistas portugueses são bolseiros ou são pagos a recibos verdes!… A sociedade portuguesa sente-se de consciência tranquila porque estes jovens estão a fazer aquilo de que gostam…

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