Monday, July 2, 2007

A propósito da reforma da educação superior em Portugal


Há cerca de sessenta anos, o engenheiro civil Fernando Vasco Costa esteve durante seis meses na Faculdade de Engenharia de Cornell nos Estados Unidos como bolseiro do Instituto de Alta Cultura (IAC), para poder avaliar o sistema de ensino de engenharia nas universidade americanas. Com base nas suas observações escreveu em 1948 um artigo na Técnica ─ Revista de Engenharia dos Alunos do Instituto Superior Técnico (IST). Após a leitura deste texto é interessante verificar que, sessenta anos depois, o sistema americano mantém as suas bases e práticas sem alterações significativas. Sobre o ambiente universitário Vasco Costa escreve o seguinte :

Os professores de Cornell, aliás como os da maioria das universidades americanas, dedicam-se exclusivamente ao ensino e à investigação. Durante a estadia do autor em Cornell foi atribuído a um dos professores o prémio Nobel da Física. […]
Os alunos de Cornell, apesar de não terem normalmente mais de 20 horas de aula por semana, puxam mais por si, e aprendem mais, do que os alunos do IST. Na nossa escola os alunos chegam a ter mais de quarenta horas de aula marcadas no horário!

A relação entre alunos e professores americanos parece ter surpreendido o visitante português há sessenta anos. O mesmo aconteceu com o autor destas linhas há trinta, e continua ainda a acontecer à nova geração dos estudantes portugueses na América (http://campus-textos.blogspot.com/2007/06/por-marcus-dahlem-aluno-de-doutoramento.html ). Eis a descrição de Vasco Costa a propósito daquele assunto:

As relações existentes entre professores e alunos da Cornell são muito diferentes daquelas que se verificam nas nossas escolas. Elas são caracterizadas por grande à-vontade, consideração, franqueza e ausência absoluta de formalismo.
As primeiras impressões de um estrangeiro perante o à-vontade dos estudantes americanos não podem ser favoráveis. Durante a aula o aluno procura as posições mais cómodas, em particular para os pés, boceja, chega a espreguiçar-se e interrompe com frequência a lição, levantando um braço, para declarar que não percebe a exposição.
Qualquer má impressão desaparece, porém, perante as vantagens da franqueza das relações entre professores e alunos e a verdadeira consideração, que estes manifestam por aqueles. Os professores, por seu lado, não pretendem aparentar mais do que sabem. É com a maior naturalidade que, uma vez por outra, ao responder na aula a um aluno que lhe pediu um esclarecimento, o professor declara que não sabe e que vai estudar o assunto para a aula seguinte. A exposição feita na aula tem sempre por único objectivo esclarecer os alunos e não o servir de pretexto à exibição da ciência do professor.
Os alunos apenas mostram respeito pelos professores quando ele existe de facto. Dado o cuidado posto no recrutamento do pessoal docente, na Universidade de Cornell, esse respeito existe quase sempre.
A frequência com que os alunos procuram os professores nos seus gabinetes, por iniciativa própria, que para lhes pedirem esclarecimentos sobre as lições, quer para lhes pedirem conselhos particulares, é uma manifestação desse respeito.
À lealdade das relações entre professores e alunos julgamos poder atribuir, em parte, o facto de se não copiar nos exames. Na faculdade de engenharia tinha sido até adoptado para os exames o regime conhecido por “honour system”. Consiste este regime em alguns alunos tomarem a responsabilidade do comportamento dos colegas e o professor abandonar a sala depois de passados os pontos de exame. O sistema funcionava a contento geral e falava-se em o adoptar nas outras faculdades.
Os professores convidam para sua casa, com certa frequência, os alunos, especialmente os dos últimos anos do curso. Nestas reuniões, nada cerimoniosas, professores e alunos conversam com o maior dos à-vontades sobre os mais variados assuntos. Os alunos ficam a saber que os professores são homens que deles apenas se distinguem por possuírem mais conhecimentos e maior experiência de vida. Os professores têm ocasião de conhecer os interesses e as necessidade dos alunos e de ganhar a sua confiança.
Para a estreiteza de relações entre professores e alunos contribui ainda a existência de conselheiros expressamente nomeados para atender alunos e resolver os seus problemas pessoais, mesmo quando alheios ao estudo, tais como os relativos a finanças, saúde e emprego.

Implementar entre nós estes hábitos americanos não será tarefa fácil porque todos os valores culturais da sociedade portuguesa se têm desenvolvido no sentido oposto. Nos anos que se seguiram ao 25 de Abril houve bastantes colaborações informais entre alunos e professores e então teria sido muito fácil alargá-las a toda a universidade. As várias reformas universitárias que se seguiram não lhes deram porém o devido valor e para dificultar tudo, a sociedade tornou-se progressivamente menos informal.
Com a reforma que se anuncia, a universidade transformar-se-á numa entidade empresarial de serviços educativos onde não haverá lugar para actividades extra-curriculares informais; os professores como funcionários serão contratados para transmitir os conhecimentos; os alunos, que são os clientes de tais serviços, estarão apenas interessados em obter uma competência profissional (ou apenas um canudo…). Neste ambiente não haverá lugar para uma vivência informal entre professores e alunos à moda americana, porque, por um lado, continua a não existir uma atmosfera exterior que lhe seja favorável e, por outro, não haverá, da parte dos professores e alunos, gosto, motivação, necessidade ou disponibilidade para a implementar.

2 comments:

Anonymous said...

Caro Luís Miguel Bernardo,

Sou neto do Fernando Vasco Costa, de quem herdei o nome. Gostei muito de ler os extractos deste artigo. tem muito a haver com o que era o meu avô.
Gostava de lhe pergunta onde o encontrou e se tem aceeso a mais documentos dele.

Melhores cumprimentos

Fernando Vasco Costa
fvc@w-consult.com.pt

Luís Bernardo said...

Caro Fernando Vasco Costa,

Felicito-o por ser descendente de um homem que revela no artigo citado uma atitude moderna numa época em que dominava o "cinzentismo" do Estado Novo. Infelizmente não tenho quaisquer elementos sobre o seu avô. Parece-me que valeria a pena fazer um levantamento da sua actividade como engenheiro e professor (?). Um neto é a pessoa indicada para o fazer...
Os melhores cumprimentos,
Luís Bernardo