O espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), com uma educação influenciada pela chamada “geração de 98”, foi um dos pensadores europeus mais lúcidos e interventores da primeira metade do século XX. Estudou na Alemanha e durante a guerra civil espanhola exilou-se em França e na Argentina, e, regressado à Europa, passou três anos em Portugal. Em Lisboa deu um curso livre de “especulação e problematização histórica” que teve um grande “êxito mundano”.
Em 1922 publicou um livro intitulado España Invertebrada que provocou uma enorme polémica. Artigos em jornais e revistas e vários ensaios de carácter filosófico, sociológico e político constituem o essencial da sua obra. Um dos seus ensaios, Misión de la Universidad, ─ baseado numa prelecção feita perante os universitários madrilenos em 1929 ─ foi traduzido para português e publicado por Sant’Anna Dionísio.
O que pensava sobre a missão educativa que devia ter a universidade pode resumir-se nas seguintes princípios: “transmissão de cultura, ensino dedicado às profissões liberais, investigação científica e formação de novos homens de ciência”. A Universidade devia transformar o estudante médio num homem culto e num bom profissional, limitando o grau de dificuldade dos seus cursos a este objectivo. A universidade devia ser, porém, “inexorável nas suas exigências perante o estudante”:
As disciplinas de cultura e os estudos profissionais deverão ser oferecidos sobre forma pedagogicamente racionalizada ─ sintética, sistemática e completa ─, e não sob a forma que a ciência abandonada a si mesma preferiria: problemas especiais, «fragmentos» de ciência, exercícios de investigação [...]. Não se vê razão alguma de peso para que o homem médio necessite ou deva ser um homem [investigador] científico.
Por isso “a investigação científica não pertence de maneira imediata e constitutiva às funções primárias da Universidade”. Embora “a cultura e profissão não sejam ciência [investigação científica], aquelas nutrem-se principalmente desta”.
Perante esta necessidade a Universidade deve rodear-se de centros e laboratórios de investigação onde os seus professores mais dotados e vocacionados para a investigação façam ciência. No entanto “não é admissível que se confunda o centro da universidade com essa zona circular das investigações que deve rodeá-la”. “Todos os estudantes superiores do tipo médio deverão ir e vir desses acampamentos à Universidade, e vice-versa”, mas a investigação científica deve ser realizada apenas por uma elite que garante a qualidade científica, “porque a vocação para a ciência é especialíssima e rara” :
A ciência [investigação científica] é coisa tão alta e delicadíssima que ─ quer queiramos, quer não ─ exclui de si o homem médio. Implica uma vocação peculiaríssima e nada frequente na espécie humana. O sábio é o monge moderno. Pretender que o estudante normal seja um espírito científico investigador é, ─ está bem de ver, ─ uma pretensão ridícula que somente pode ter sido acolhida e agasalhada (as veleidades agasalham-se como os catarros e outras inflamações) pelo utopismo característico das gerações anteriores à nossa. […] De resto, não é desejável que o estudante normal seja um espírito científico, nem mesmo idealmente. A ciência é uma das coisas mais altas mas não é a única.
Ortega y Gasset insiste que: “o ensino superior e a investigação se prejudicam mutuamente quando se pretende fundi-las, em vez de deixá-las ao lado uma da outra, em permuta de intensos influxos, mas permuta muito livre; constante mas espontânea.”
Para Ortega y Gasset a ideia de cultura que a universidade deveria dar aos seus alunos era muito abrangente e nela incluía ─ além das ideias da história, filosofia e da ciência da vida ─ as ideias da física:
A física e o seu modo mental de ser e de ver é uma das grandes rodas íntimas da alma humana contemporânea […]. Um homem pode ignorá-la […] quando esse homem é um humilde pastor nos vales serranos, ou um labrouste adstrito à gleba, ou um operário manual escravizado pela máquina. Se se trata, porém, de um senhor que se diz médico, ou magistrado, ou general, ou filólogo, ou bispo ─ isto é, que pertence à classe dirigente da sociedade ─ ,se tal senhor ignora o que é hoje o universo físico para o homem europeu, teremos que o considerar como um perfeito bárbaro, por muito que saiba das suas leis, ocupações, ou santos padres […]. Quem não possuir a ideia física (não a ciência física mesma, mas sim a ideia vital do mundo que ela criou) […] não é um homem culto […]. É inverosímil que um homem possa ser de facto, nessas condições, um bom médico, ou um bom juiz, ou um bom técnico.
Ortega y Gasset não aborda o problema que hoje tanto preocupa os nossos governantes: o financiamento do ensino superior. Apesar desta falha lamentável do pensador, não deveriam os nossos reformadores ler com alguma atenção as ideias que ele exprimiu e que Sant’Anna Dionísio entendeu transladar para português? Afinal a Universidade europeia é uma instituição com mais de oitocentos anos… e só passaram oitenta desde que foram tão claramente expressas as ideias de um vizinho espanhol que conhecia razoavelmente bem o nosso país.
Sunday, July 15, 2007
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