Friday, June 1, 2007

O que aconteceu há 60 anos


A leitura de um folheto contendo o programa das comemorações do 8º centenário da tomada de Lisboa aos mouros ─ que tiveram lugar no Porto em 7 de Junho de 1947 com a presença do Presidente da República General Óscar Carmona ─ fez-me recordar um decreto de Salazar que afectou severamente a ciência portuguesa, publicado na imprensa nacional a 15 de Junho desse mesmo ano, isto é, oito dias depois.

Nunca foi tolerável para o regime salazarista o pleno desenvolvimento da ciência nacional, porque, com a ciência, coabita a liberdade de opinião e de expressão, um valor inaceitável num regime ditatorial.
Em 1934, houve uma tentativa falhada de golpe contra a ditadura militar aliada a Salazar. A obstinação deste político em silenciar toda e qualquer oposição ou crítica levou-o à publicação do decreto de 16 de Maio de 1935 que teve como consequência a demissão de 33 funcionários civis e militares, entre os quais se contavam os professores universitários Abel Salazar (1889-1946), Aurélio Quintanilha (1892-1987), Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989), Sílvio Lima (1904-1993), bem como os professores do ensino primário Jaime Carvalhão Duarte, Costa Amaral e Manuel da Silva. Nesta época, era Ministro da Instrução Pública e Belas Artes Eusébio Tamagnini de Matos Encarnação.

Em 1947, ocorre uma tentativa de revolta militar contra o regime salazarista ─ a abrilada ─, seguida de greves estudantis em Lisboa a 10 de Maio. Para erradicar de vez uma oposição inteligente e esclarecida, Salazar fez publicar, em 15 de Junho de 1947, uma nota oficiosa do Conselho de Ministros, que ordenava a demissão de 11 oficiais do Exército e de 21 professores universitários, impondo-lhes uma aposentação compulsiva ou a rescisão dos contratos. Foram então afastados do ensino universitário ─ quase todos em 18 de Junho ─ os professores: Ruy Luís Gomes, Mário Silva, Celestino da Costa, Cândido de Oliveira, Pulido Valente, Fernando Fonseca, Adelino da Costa, Cascão de Ansiães, Torre de Assunção, Flávio Resende, Ferreira de Macedo, Peres de Carvalho, Marques da Silva, Zaluar Nunes, Rémy Freire, Crabée Rocha, Dias Amado, Manuel Valadares, Armando Gibert, Lopes Raimundo, Laureano Barros, José Morgado e Morbey Rodrigues. Com esta decisão, Salazar destruiu uma geração de investigadores portugueses, muitos deles formados no estrangeiro, que iniciavam um interessante trabalho de consolidação da ciência portuguesa em várias áreas.

O critério seguido por Salazar para a “limpeza” das universidades foi eliminar as maiores competências científicas e pedagógicas, atingindo assim os professores com melhor curriculum científico e aqueles que maior influência exerciam sobre os seus jovens alunos. A pedido do ditador, a lista desses professores foi ignobilmente preparada e fornecida às autoridades pelos próprios directores das Faculdades, demonstrando, assim, que muitos docentes universitários nunca deixaram de dar apoio ao regime salazarista… Oficialmente, porém, a razão invocada para a demissão dos professores universitários era o suposto apoio destes professores aos distúrbios estudantis contra o governo. Segundo a nota, esses professores “ostensiva ou veladamente animaram a agitação e os agitadores”. Decreta-se que são afastados “do exercício das funções públicas os indivíduos que se têm salientado pela prática de actos sediciosos e deram provas inequívocas de oposição activa aos princípios fundamentais da constituição política”. Era na altura Ministro da Educação o professor Fernando Andrade Pires de Lima (1906-1970) da Faculdade de Direito de Coimbra que tomara posse em 4 de Fevereiro desse ano e que continuou a exercer este cargo até Julho de 1955.

Para manter sólido o seu regime político, Salazar atrasou a industrialização, a ciência, a cultura e o bem-estar do povo em nome dos “mais elevados e nobres” valores e interesses da nação portuguesa. Ainda hoje sentimos os efeitos dessa política de grave miopia, porque esta incapacidade, que tudo desfoca, alastrou progressivamente a toda a sociedade e a todas as instituições que dela emanam.
Não deixa de ser interessante que dois acontecimentos tão simbólicos: a comemoração, no Porto, do 8ºcentenário da tomada de Lisboa aos mouros e a concretização de uma política de suicídio nacional tivessem ocorrido há 60 anos num intervalo de apenas nove dias! …

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