Saturday, May 26, 2007

Casos de bibliomania


Os bibliófilos, que são uma importante força impulsionadora da cultura, existem em número elevado em todo o mundo e também, felizmente, em Portugal. No entanto, os bibliófilos compulsivos por desgraça ou por fortuna ─ os bibliómanos ─ constituem apenas uma minoria. Muitas histórias se contam sobre estes homens, constituindo um acervo anedótico muito considerável. Houve bibliómanos que pretenderam produzir um livro perfeito, imaculado, sem o mínimo defeito, e outros que pretenderam coleccionar exemplares de tudo o que se publicava. A experiência de qualquer bibliófilo normal mostra que tais objectivos são de difícil se não impossível concretização. Apesar disso, tem havido sempre alguém que não desiste destes objectivos e de outros não menos ambiciosos.

Uma tentativa célebre para fazer sair uma edição imaculada de um livro deve-se a D. José Maria de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos (1758-1825), conhecido por Morgado de Mateus, que em 1817 pretendeu que a sua magnífica edição dos Lusíadas ─ actualmente muito rara e valiosa ─ não tivesse um único erro tipográfico. Para isso empenhou-se pessoalmente com trabalho e dinheiro, recorrendo à assistência de um cuidadoso revisor, um tal Menia, e de um famoso impressor parisiense, Didot. A meio da edição, verificou-se que na fase da composição, uma das letras da palavra Lusitano fora mal colocada pelo tipógrafo fazendo que, nas primeiras cópias, surgisse uma, embora única, gralha. Este lamentável erro foi corrigido, mas ninguém parece ter dado toda a importância ao facto de Camões ser cego do olho direito. Numa das gravuras, em que o poeta é representado na gruta de Macau, o olho direito aparece bem representado mas sem qualquer sinal de cegueira. É de referir que na produção do livro estiveram envolvidos quatro desenhadores (Gerard, Fragonard, Visconti e Desenne) e 12 gravadores.

Uma outra tentativa de produzir um livro perfeito terá ocorrido na Escócia. O famoso editor Foulises (ou Foulis) de Glasgow tentou publicar um trabalho que deveria ser um espécimen perfeito de rigor tipográfico. Para isso tomaram-se todos os cuidados, sendo a revisão entregue a seis revisores experimentados que demoraram horas de leitura a rever cada página e a quem não foi exigida pressa no trabalho. Completada esta primeira revisão, cada uma das páginas foi afixada durante duas semanas nas paredes do átrio da universidade com a promessa da atribuição de um prémio de 50 libras a quem descobrisse alguma gralha. Como ao fim de duas semanas ninguém tivesse relatado nenhum erro, Foulis, confiante, mandou imprimir e distribuir o trabalho. Para surpresa de todos, não tardou que se descobrissem vários erros, um dos quais na primeira linha da primeira página!...

Um bibliófilo tão compulsivo como o bibliómano Sir Thomas Phillipps (1792-1872) será difícil de encontrar ou mesmo imaginar. Esta “doença” ter-se-lhe-ia manifestado durante a meninice com a obstinação de querer possuir tudo quanto estivesse escrito em papel, incluindo documentos e livros, tendo mesmo confessado a amigos que o seu maior desejo era possuir uma cópia de todos os livros publicados no mundo!... Impulsionada por este desejo, a colecção de Phillipps cresceu ao longo dos anos tendo atingido 100 mil livros e 60 mil documentos, à custa, naturalmente, de muito dinheiro. Sucessivas falências e constantes perseguições de credores fizeram parte da vida agitada deste obcecado coleccionador. Muitos dos pacotes e caixas, que todos os dias chegavam a sua casa, nem sequer eram abertos, sendo muitos deles logo metidos em grandes caixões, semelhantes a urnas funerárias, pois desta forma poderiam ser retirados com maior facilidade no caso de um incêndio ─ uma tragédia "mais que provável" que angustiava os dias do coleccionador. Todos os compartimentos da sua casa estavam abarrotados de caixas, livros e papéis sendo uma tarefa impossível para os visitantes encontrar fosse o que fosse. Para afastar borboletas e outros insectos cujas larvas adoram comer papel… Phillipps espalhava pelas várias salas ramos que podiam ser usados para enxotar tão indesejáveis intrusos. Cresceu de tal forma esta colecção que a casa de Middle Hill não aguentou o peso, e os soalhos começaram a ceder debaixo de centenas de toneladas de papel. Crê-se que esta degradação da casa teria sido porém propositada, com o objectivo de os seus bens, e muito particularmente os seus livros, não caírem nas mãos de James Halliwell, o genro que nunca tolerou e a quem chamava “ladrão de livros”. Perante a derrocada eminente da casa, Sir Thomas Phillipps decidiu transferir, em 1863, todos os seus livros e papéis para uma nova propriedade perto de Cheltenham. Para essa operação foram mobilizados 160 homens, 103 vagões puxados por 230 cavalos. Diz-se que durante anos se podiam ainda encontrar destroços dos carros que tinham colapsado sob o peso dos livros. Na nova casa, continuou a fazer crescer a sua colecção até que a morte o libertou de tão compulsiva e angustiante bibliomania, em 1872.Como acontece com quase todas as bibliotecas de bibliófilos defuntos, os familiares directos começaram de imediato a dispersá-la, vendendo-a directamente ou através de inúmeros leilões especialmente organizados. Ainda hoje, são anunciados para venda livros da biblioteca de Sir Thomas Phillipps. Verdadeiras preciosidades foram encontradas na caótica biblioteca deste ilustre coleccionador, como por exemplo um raríssimo manuscrito medieval contendo metade das Metamorfoses de Ovídio que há muito se julgava perdido. Não fora a compulsiva bibliomania de Thomas Phillipps, o manuscrito completo das Metamorfoses ─ cuja 2ª parte se encontrava no Magdalen College, em Oxford ─ nunca teria sido recuperado…

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