Monday, May 14, 2007

Tempos heróicos da investigação científica


Os pioneiros têm que possuir uma resistência e uma heroicidade extraordinárias, porque o arranque de qualquer nova actividade exige enormes esforços e as condições de trabalho são sempre más ou mesmo inexistentes. Na ciência há muitos exemplos de actos heróicos praticados pelos seus pioneiros, alguns dos quais podem mesmo ser classificados de martírio.
Muitos destes actos têm sido relatados em livros e artigos, como é o caso do livro Les Martyrs de la Science (1879) de Gaston Tissandier, traduzido para Português por Adolfo Portela com o título Martyres da Sciencia. Nele se faz a descrição do trabalho heróico de dezenas de pioneiros da ciência nas mais diversas áreas, os quais sacrificaram o seu bem-estar e deram inclusivamente a própria vida em prol do desenvolvimento científico. Embora actualmente não seja considerado um acto de heroicidade, há ainda muitos cientistas que se dedicam quase exclusivamente à ciência desvalorizando os aspectos das suas vidas que o cidadão comum mais preza.
É fundamental ter uma percepção correcta das vicissitudes por que passaram os pioneiros da ciência moderna para podermos avaliar, com maior justiça, os legados científicos que nos deixaram.
O desenvolvimento da medicina, como é sabido, é muito dependente do desenvolvimento de outras ciências como a física, a química e a biologia e, sempre que ocorre nestas ciências básicas uma nova descoberta ou invenção, de imediato se procuram tirar delas possíveis benefícios para a prática médica. Assim aconteceu com determinadas inovações na área da electricidade como, por exemplo, a invenção da pilha de Volta ocorrida em 1800.
Em 1801, o médico francês Pierre-Hubert Nysten (1771-1818) realizou experiências pioneiras da acção da pilha eléctrica sobre músculos e órgãos de animais, incluindo os do corpo humano. No seu livro Nouvelles Expériences Galvaniques (1802) descreve essas experiências e, numa nota de fundo de página, revela as dificuldades que teve de ultrapassar para fazer as suas experiências no cadáver de um condenado:

Seja-me permitido fazer uma descrição sucinta dos sacrifícios que tive de fazer e dos perigos por que passei durante esse dia para satisfazer o meu zelo.
Saio de casa às dez horas da manhã, com o aparelho vertical de Volta na mão, para me dirigir a um dos pavilhões da escola de medicina, e aí continuar as minhas experiências. Ao entrar na rua da Observância, ouço anunciar por um apregoador a condenação de um criminoso à pena de morte. Compro a sentença e verifico que deve ser executada no mesmo dia 14 de Brumaire [5 de Novembro]. Dirijo-me ao cidadão Thouret, director da Escola. Manifesto-lhe o meu desejo de tentar no coração do homem as experiências que já tinha realizado no coração de várias espécies de animais. Acrescento que vai ser supliciado um criminoso e que, se tivesse o seu apoio, estava disposto fazer todos os esforços necessários para não deixar escapar uma tal oportunidade. O cidadão Thouret apressa-se a escrever uma nota sobre o assunto ao prefeito da polícia. Dirijo-me à prefeitura; obtenho uma autorização pela qual o corpo do indivíduo que ia ser morto seria colocado à minha disposição depois da decapitação, isto é, desde o momento que fosse conduzido para o cemitério de Sainte-Catherine. Munido da autorização da polícia, chego cedo à praça de Grève; e aí, aguardando o desgraçado que a justiça devia castigar, eu reflicto que o caminho que vai deste lugar ao cemitério é bastante longo; que uma carroça não vai ordinariamente senão a passo do cavalo que a puxa e por consequência com bastante lentidão; enfim que é possível que uma circunstância imprevista retarde de algum tempo a sua partida após a execução. Perante estas dificuldades que podiam comprometer o êxito da minha experiência, penso que devia correr ao Palácio da Justiça com a intenção de as ultrapassar, se para isso encontrasse os meios; transponho a barreira que me levantavam as sentinelas colocadas na grade do Palácio; exorto o condutor da carroça a fazer andar o seu cavalo o mais lestamente possível desde a praça de Grève até ao cemitério e prometo provar-lhe o meu reconhecimento. Com o mesmo objectivo vou encontrar-me com o cabo da brigada de polícias que deveriam escoltar o triste cortejo: faço mais; falo com o executor. Não me resta senão o tempo necessário para voltar ao lugar da execução. Mal havia chegado quando vejo cair o cutelo fatal. Um espectáculo tão arrepiante faz-me tremer de horror. Entretanto retiro-me e corro para o cemitério. Apresento ao porteiro a minha autorização e solicito-lhe um local; responde-me que não há nenhum e objecta-me que eu não posso entregar-me a um trabalho anatómico num lugar público onde chegam constantemente cortejos fúnebres. Vejo no meio do cemitério um grande fosso recentemente escavado com a profundidade de 50 a 60 pés. Rogo ao porteiro para me conceder um pequeno canto. Depois de várias objecções, acede às minhas insistências. Uma parte da fossa só estava escavada até 15 pés do solo. É a essa espécie de plataforma que dou a minha preferência; dava-me a vantagem de usufruir ainda durante algum tempo da luz do dia e de obter mais rapidamente aquilo de que pudesse ter necessidade durante o curso do meu trabalho. Faço aí colocar o cadáver e aí desço eu próprio. Mal chego ao fundo da escada, um odor sepulcral atinge o meu olfacto e a atmosfera húmida daquele lugar de mortos, parando de repente o suor que brotava de todos os pontos da superfície do meu corpo, fez-me experimentar uma sensação semelhante à de um banho de gelo. Por tudo isto pode ainda avaliar-se o perigo a que a minha saúde esteve exposta. Mas isto não é tudo: o meu laboratório, consideravelmente apertado por um enorme montão de pedras tinha no máximo seis pés de comprimento por quatro de largura e o lado do comprimento estava na direcção do fundo da fossa; de maneira que quando queria passar de um lado do cadáver para o outro, encontrava-me no bordo de um precipício repelente onde estive quase a cair várias vezes durante o espaço de tempo que durou a minha experiência. Passo em silêncio as incomodidades relativas à própria experiência, tais como a situação de o cadáver estar colocado sobre a terra, a minha secretária ser composta de 3 ou 4 pedras colocadas umas sobre as outras, o assento vacilante do meu aparelho galvânico, a terra que os obreiros, trabalhando por cima da minha fossa, faziam cair a todo o instante na minha cabeça, etc.


Para além dos procedimentos legais e das questões de natureza ética que esta descrição revela, podemos apreciar o espírito de sacrifício e o empenho manifestados pelo autor das experiências. Este é um exemplo paradigmático das claras limitações de toda a espécie que envolveram a actividade médico-científica há apenas 200 anos. É notável o esforço que foi necessário fazer pelos pioneiros da ciência para que hoje possamos beneficiar dos estudos por eles realizados.

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