Friday, May 4, 2007

O conhecimento da ciência náutica quinhentista portuguesa na primeira metade do século XX


Nos anos que se seguiram à implementação da República e nos posteriores à 2ª Guerra Mundial, houve uma tentativa de valorização da ciência náutica portuguesa de quinhentos com o objectivo de reabilitar a sua imagem. Nesta iniciativa, apoiada pelo Estado português, distinguiram-se estudiosos como Joaquim Bensaúde (1859-1952), Luciano Pereira da Silva (1864-1926), Abel Fontoura da Costa (1869-1940), Gago Coutinho (1869-1959) e Armando Cortesão (1891-1976), entre outros.

Antes dos trabalhos destes autores, a ciência náutica portuguesa era considerada inexistente. Segundo se dizia, os portugueses de quinhentos tinham-se limitado a importar os conhecimentos alheios para os aplicarem nas suas navegações. Esta ideia tinha sido lançada no século XIX por historiadores alemães ─ liderados pelo explorador e naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859) autor de O Cosmos ─ que tentaram demonstrar que toda a técnica usada pelos portugueses nos descobrimentos tinha tido origem na ciência náutica alemã. Os fundamentos desta opinião iam buscá-los à actividade de Martinho da Boémia que, a convite D. João II, tinha chegado a Portugal em 1484. Este matemático e astrónomo, que tinha sido discípulo de Regiomontano, assumiu o cargo de cosmógrafo na expedição de Diogo Cão e, por esta razão, os seus compatriotas de oitocentos pensaram que tinha introduzido no nosso país os instrumentos de navegação, as tábuas náuticas e os demais conhecimentos de náutica e de astronomia. Segundo a opinião destes historiadores, toda a preparação técnica dos grandes marinheiros e pilotos portugueses teria tido origem neste sábio alemão e, directa ou indirectamente, na escola alemã em que ele se formara.
Por falta de documentos históricos em favor de uma escola portuguesa ─ resultante, segundo uma ideia comum, do secretismo que sempre acompanhou a nossa exploração marítima ─ não era fácil contrariar a opinião alemã. Para a rebater, porém, Joaquim Bensaúde escreveu em 1912 o livro L'astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes decouvertes que foi comentado na ISIS, a revista da History of Science Society dos EUA, por Jean Mascart de forma elogiosa: “a obra que aqui assinalamos […] é a mais importante que foi escrita desde há longo tempo sobre estes assuntos”.
Bensaúde contesta a posição dos académicos germânicos e afirma que, se os portugueses receberam de alguém conhecimentos astronómicos e os instrumentos náuticos, teria sido dos espanhóis (catalães em particular), italianos e franceses, mas nunca dos alemães que não tinham nenhuma experiência marítima.
Em 1917, Bensaúde publicou um outro livro Histoire de la science nautique portugaise (Résumé) também comentado na ISIS, desta vez por George Sarton seu director, onde reforça as mesmas ideias anteriores. Neste livro, Joaquim Bensaúde mostra que as ciências náuticas eram estudadas entre nós desde o tempo do infante D. Henrique, muito antes da chegada de Martinho da Boémia, e continuaram depois a ter um cunho bem português com Pedro Nunes e D. João de Castro.
Bensaúde mostrou ainda que existia em Portugal, ao lado da ciência náutica, um importante movimento cultural abarcando outras áreas, tendo referido as figuras nacionais que mais ilustraram essa época: Gaspar Correia, Damião de Góis, André de Gouveia, Garcia da Orta, Camões. Depois de referir tudo isto, George Sarton termina a sua recensão da seguinte forma:

É claro que o livro de Joaquim Bensaúde está repleto de factos e de ideias e é eminentemente sugestivo; a nossa única censura é que ele não esteja melhor escrito. O seu autor não tem o talento da ordem e da clareza; mas a sua actividade incansável e perspicácia merecem todo o nosso reconhecimento.

Esta tese de Bensaúde era também seguida por investigadores nacionais como Luciano Pereira da Silva, seu contemporâneo, e foi posteriormente retomada por outros como Fontoura da Costa que apresentou ao III Congresso Internacional de História da Ciência realizado em Lisboa, Coimbra e Porto em 1934, uma comunicação intitulada La science nautique des Portugais à l'époque des découvertes, publicada nas Actas do Congresso (1936) e nos Anais do Clube Militar Naval (1935). Juntamente com as Actas do Congresso, esta comunicação foi analisada por Sarton na ISIS em 1938. Fontoura da Costa, que mereceu ─ tal como o Presidente da República o general Carmona e Ricardo Jorge ─ a publicação do seu retrato (que em cima se reproduz) nas actas, refere os progressos realizados pelos portugueses em várias áreas das ciências náuticas em particular nos instrumentos de observação, nos astros, na bússola, nas cartas marítimas, nos roteiros e na pilotagem.
Sarton parece que tinha em grande apreço o trabalho de Fontoura da Costa referindo-se em particular à qualidade de A Marinharia dos Descobrimentos (1934), livro com que o autor obteve reconhecimento nacional e internacional: o título de membro associado da Academia de Ciências de Lisboa e um prémio da Academia da Marinha Francesa. George Sarton (1884-1956) termina o seu artigo da seguinte forma:

A publicação das actas foi feita com muito cuidado pelo Dr. Arlindo Camilo Monteiro. Enviou provas a todos os autores menos a mim! Disto resultou que o texto do meu discurso presidencial contivesse erros bastante desagradáveis. Quanto à ortografia dos nomes dos lugares por si adoptada (depois de MIELI) [pág. XLIII] é de pura infantilidade.

Logo após a sua visita a Portugal realizada durante o congresso, Sarton tinha escrito, em 1935, um pequeno artigo na ISIS sobre os trípticos de Nuno Gonçalves e comentava que tinha aprendido muito na referida visita “mas muito pouco de história da ciência”…

Em 1951-52, a Agência Geral do Ultramar publicou uma colectânea de trabalhos de Gago Coutinho em dois volumes, intitulada A Nautica dos Descobrimentos; os descobrimentos maritimos vistos por um navegador: colectânea de artigos, conferencias e trabalhos inéditos, que foi igualmente comentada na ISIS em 1953, pelo almirante e historiador Samuel Eliot Morison (1887-1976). Enquanto relata sucintamente o conteúdo da obra, Samuel Morison ─ que viria a publicar uma biografia de Cristóvão Colombo em 1942 ─ faz o seguinte comentário:

Os portugueses nunca perdoaram a Colombo o ter ganho o “grande prémio” para Espanha, depois de ter aprendido a navegar com eles. Nunca li um artigo ou um livro de autores portugueses ou brasileiros que não seja marcado pelo desejo de provar que Colombo era um português encoberto e portanto um grande homem, ou, ao contrário, um charlatão ou, na melhor das hipóteses, um ignorante cheio de sorte. O almirante [Gago Coutinho] manifesta a sua falta de respeito por Colombo não apenas num capítulo mas ao longo de todo o livro.
Concluída a sua análise, Morison finaliza como a seguinte frase:

Numa palavra, o almirante Gago Coutinho é sempre provocativo, muitas vezes instrutivo e algumas vezes imoderado. O que realmente precisamos para a história desta ciência em particular é uma história douta, temperada e abrangente de todo o período das descobertas oceânicas.

Armando Cortesão escreveu The nautical chart of 1424 and the early discovery and cartographical representation of America; a study of the history of early navigation and cartography em 1954, uma obra em fólio de grande qualidade gráfica que foi comentada na ISIS por Emile Janssens. Depois de resumir o conteúdo e as principais teses do historiador português ─ descrição da carta náutica onde surge pela primeira vez a palavra “Antilia” para designar um conjunto de ilhas que serviram para a primeira representação cartográfica da América ─ Emile Janssens afirma o seguinte:

Não se pode dizer que a condução desta investigação tenha levado a provas convincentes das preposições apresentadas. Tem-se o impressão de que as hipóteses se transformam em certezas sem outro suporte que a prévia convicção do autor. Esta convicção parece estar nele enraizada há muito tempo, por toda a espécie de razões sem dúvida sentimentais tanto ─ ou apenas menos ─ quanto científicas.

E conclui:

O que é certo é que nos encontramos perante uma edição muito bela de um documento interessante e perante uma preciosa colecção de estudos comparativos, realizados com método, de que os historiadores de cartografia poderão fazer um uso fecundo.

Na sua 2ª metade do século XX houve outros historiadores da ciência que escreveram sobre a ciência náutica portuguesa de quinhentos, como o almirante Avelino Teixeira da Mota (1920-1982) e o professor Luís de Albuquerque (1917-1992), entre outros. Todos esperamos que o aparecimento e o estudo de novos documentos históricos dessa época possa revelar a grande dinâmica científica nacional no início do século XVI, mas esperamos também que o conhecimento actual seja suficiente para estimular uma dinâmica semelhante no início deste século XXI.

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