Tuesday, March 20, 2007

O valor da ciência pura e aplicada

A discussão epistemológica sobre o valor relativo da ciência pura, ou fundamental, e aplicada, ou utilitária, surgiu logo após o aparecimento da ciência moderna, porque, até aí, ciência era especulação pura e tecnologia pertencia às artes manuais. A ciência era feita por filósofos; as tecnologias eram desenvolvidas por habilidosos que usavam e aperfeiçoavam o conhecimento empírico e prático, acumulado ao longo de gerações. Estas duas actividades nada tinham de comum entre si e as comparações não faziam sentido.
Durante os últimos três séculos, a importância relativa da ciência fundamental e a ciência aplicada assumiu diferentes matizes, tendo mesmo surgido opiniões extremadas. Lentamente, porém, foi-se estabelecendo uma opinião consensual sobre a necessidade de um equilíbrio entre estes dois aspectos da ciência que eram, afinal, as duas faces de uma mesma moeda. Foi nos países cientificamente mais evoluídos que essa opinião se estabeleceu mais cedo. Em Portugal não é claro que se tenha estabelecido um consenso suficientemente alargado sobre esta matéria, o que, de alguma forma, mostra o atraso em que nos encontramos em termos de desenvolvimento tanto científico como tecnológico.
As primeiras discussões, envolvendo os intelectuais portugueses, sobre o valor relativa da ciência pura e aplicada (não confundir com ciência teórica e experimental) surgiram sobretudo depois da criação das universidades de Porto e Lisboa em 1911, visto que os professores universitários começaram a ter a obrigação estatutária de fazer investigação científica. Mas foi principalmente depois do estabelecimento da Junta da Educação Nacional ─ criada em 1929 para dar apoio financeiro à investigação científica ─ que essa discussão se intensificou.
Na oração de sapientia “proferida ante o Claustro Pleno da Universidade de Lisboa a 8 de Dezembro de 1925” ─ altura da comemoração do primeiro centenário da Régia Escola de Cirurgia de Lisboa ─ José Matos Sobral Cid, professor de psiquiatria, afirmava o seguinte:

Entre nós, governantes e governados, ainda não mediram o valor social e o alcance pratico da investigação, tanto no domínio das sciencias puras como no das applicadas, nem comprehenderam o papel decisivo que as Universidades modernas e as Altas escolas Technicas podem desempenhar na regeneração moral e económica do paiz. […] Há, ainda entre nós, quem pense que a cultura da sciencia pura é uma funcção de luxo, e os encargos que ella acarreta, despezas sumptuárias, que só um paiz desindividado e prospero se póde permitir.

Segundo esta opinião, o cultivo da ciência pura era para os portugueses uma extravagância sumptuária, sem utilidade aparente, mas nem por isso era dado valor suficiente à ciência aplicada. Porém, tal como Sobral Cid, muitos cientistas portugueses já pensavam que a coexistência da ciência pura e aplicada trazia benefícios mútuos que deveriam ser explorados.
Em 1944, Corino de Andrade, a propósito da importância da investigação científica para a melhoria da saúde dos povos, escreveu o seguinte:

A América, a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia e outros países, há já muito anos que organizaram todas as modalidades de pesquisa científica, criando institutos de investigação pura e centros de investigação junto das indústrias, dos hospitais, dos serviços de saúde, etc.

No ano seguinte, Armando de Castro, licenciado em Direito e em Ciências Político-Económicas, defendia a criação de um Instituto Central de Investigação Económica “trabalhando, por um lado, em estreita ligação com todos os produtores e organismos estatísticos, como o Instituto Nacional de Estatística, e com as Universidades, laboratórios, escolas técnicas e Institutos de Investigação Cientifica, por outro”. Cruz Malpique, professor liceal num liceu portuense, fazia parte de um grupo de intelectuais que defendia ser a ciência uma componente cultural de grande relevância e como tal deveria ter um carácter totalmente desinteressado, tendo escrito em 1951 o seguinte:

A investigação há-de ser essencialmente desinteressada. [….] O prazer de descobrir a Verdade ou de criar a Beleza devem sábio e artista considerá-lo como remuneração do seu trabalho.

Neste texto o autor realçava a importância da ciência pura, em particular, dado que o objectivo da ciência aplicada é fundamentalmente de interesse económico.
O Jornal de Letras e Artes publicou em 27 de Junho de 1962 um artigo intitulado A Investigação científica: Problemas da Ciência em Portugal, que contém as ideias de quatro investigadores, que na época eram investigadores, jovens e promissores: Carlos Almaça, zoólogo, Fernando Bragança Gil, físico, Ricardo Quadrado, mineralogista, e Rui Carvalho Pinto, bioquímico. A temática abordada versava várias questões como a distinção entre investigação fundamental e aplicada, as condições gerais necessárias à investigação científica e a função da universidade.
Carlos Almaça afirmava que “sobretudo em países economicamente pouco desenvolvidos, é indispensável a actividade em investigação fundamental, pois dela depende a rapidez e eficiência das aplicações”. Fernando Gil entendia que entre nós se valorizava mais a importância da investigação aplicada “relegando a investigação fundamental para um segundo plano, quando não se chega mesmo a afirmar que ela não é mais do que um ornamento, um luxo, incompatível com o orçamento de um país de modestos recursos”. Ricardo Quadrado entendia não haver “interesse em continuar a especular sobre o papel que cabe à investigação aplicada ou à chamada investigação fundamental ou pura”, visto que “estes dois aspectos da investigação são interdependentes”, podendo-se “quanto muito distinguir entre investigação científica de aplicação a curto prazo e de investigação científica de aplicação a longo prazo”. De acordo com Rui Carvalho Pinto, “a investigação fundamental no nosso país está a trabalhar em condições bastantes mais pobres do que a investigação aplicada, que, por vezes, tem possibilidades materiais razoáveis”, donde poderá concluir-se que em sua opinião haveria por parte das instituições financiadoras uma preferência pela investigação aplicada.
Dando mais valor à ciência pura ou aplicada, todos aqueles que se interessavam pela ciência reconheciam que deveria haver maiores investimentos nacionais na investigação científica. O já citado Cruz Malpique, defensor da ciência desinteressada, defendia em 1969 um investimento forte na ciência nacional e para o justificar apresentava argumentos sólidos, que são, em 2007, particularmente pertinentes:

Em ciência todas as despesas não são demais. Os gastos que se fazem com a investigação científica ─ ainda que sejam astronómicos ─ são os únicos que não empobrecem um país. Pelo contrário: são da força de o enriquecerem. Precisamente quando um país se encontra em ruína, é que não se deve ser unhas de fome nos orçamentos relativos à ciência. Para quê? Para sair da ruína em que se atolou.

Os responsáveis políticos, porém, fizeram sempre orelhas moucas a estas vozes sensatas e os orçamentos destinados à ciência continuaram baixos tanto em períodos de alta como de baixa do crescimento económico.
Com as constantes crises financeiras que se seguiram ao 25 de Abril, a utilidade do financiamento à investigação científica continuou a discutir-se entre nós. Surgiram vozes defendendo que havia outras prioridades para gastar os impostos dos contribuintes, como, por exemplo, o combate ao desemprego, à criminalidade ou à pobreza. Outras, mais moderadas, entendiam que, perante a escassez de recursos, a investigação científica deveria limitar-se à investigação aplicada com perspectivas de dividendos financeiros imediatos. Os investigadores menos jovens lembram-se do movimento revolucionário que os empurrava para a resolução dos problemas técnicos da nossa indústria… Neste período histórico “revolucionário”, a investigação pura era peçonha do capitalismo burguês…
Nos nossos dias, não existem aparentemente preconceitos das entidades financiadores relativamente à investigação pura ou aplicada, mas continuam a existir reduzidos financiamentos para a investigação científica. Os discursos dos ministros em prol do desenvolvimento científico e tecnológico não têm passado de promessas vãs para manipular a opinião pública… e os ministros e todos aqueles que fazem investigação científica em Portugal bem o sabem…

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