Sunday, February 25, 2007

O mecenato científico em Portugal


O mecenato e as doações testamentárias em benefício da ciência não integram a tradição dos países latinos de cultura católica. Em 1919, Agostinho de Campos referia-se este facto nos seguintes termos:

Nos países anglo-saxónicos, e nos Estados Unidos principalmente, a manificência particular desentranha-se em subsídios e legados opíparos às obras escolares e scientíficas. As nações latinas, menos generosas para o bem comum, dão no entanto, lautamente; mas não tanto ao ensino e à sciência, como à assistência e à piedade.

Nos países latinos, os milionários preferem doar os seus bens a instituições religiosas ou de benemerência social, na convicção ou esperança de receberem em troca alguma compensação na outra vida… Em França, ocorreu no século XIX um exemplo raro de mecenato científico protagonizado pelo banqueiro Raphael Bischoffsheim que, no ano de 1875 doou uma luneta ao Observatório de Paris e mais tarde financiou a construção e o equipamento do Observatório de Nice, dotando-o ainda de um orçamento anual para o manter em actividade.
No século XIX, os grandes exemplos de mecenato vinham dos E.U.A., um país de forte tradição protestante. Pode mesmo afirmar-se que a astronomia americana atingiu tão elevado grau de desenvolvimento no fim do século XIX em virtude do mecenato e das doações obtidas por subscrição pública.
Para além das suas grandes qualidades científicas, o astrónomo George Ellery Hale tinha uma invulgar capacidade de encontrar mecenas para financiar os seus projectos. Convenceu Tyson Yerkes a financiar o grande telescópio Yerkes, Andrew Carnegie a suportar as despesas para a construção do telescópio de 60 polegadas do Monte Wilson, e John Hooker a financiar o telescópio de 100 polegadas. Finalmente, em 1929 Hale convenceu a Rockefeller Foundation a financiar o telescópio de 200 polegadas do Monte Palomar que, merecidamente, veio a chamar-se telescópio Hale!...
No século XX, a tradição mecenas americana desenvolveu-se mais do que em qualquer outro país. Desde há décadas que as doações destinadas tanto ao ensino como à investigação são uma fatia significativa do orçamento das universidades americanas. Muitas instituições de investigação científica são alimentadas pelas fortunas deixadas por milionários beneméritos, que têm tido uma especial predilecção pela investigação médica. A este propósito John Baker desabafava em 1945:

Os milionários gastam rios de dinheiro com a medicina clínica em vez de o destinarem às ciências basilares, que são a condição essencial da existência dela. […] Deixem lá quem trabalha em medicina clínica ter grandes laboratórios e bons honorários e tudo o mais que deseje. Mas concedam ao investigador das ciências basilares a liberdade de investigação.

Comparado com o que se passa na América, é insignificante o mecenato científico em Portugal. No entanto houve no século XIX alguns casos, embora poucos e parcos, de mecenato científico. O rei D. Pedro V cedeu da dotação régia 30 contos de réis para a fundação do Observatório Astronómico de Lisboa e mais 4 contos do seu orçamento pessoal para se construir o edifício. Doou ao Museu Nacional uma importante colecção de fósseis e ao Museu da Universidade de Coimbra uma colecção de aves. D. Luiz contribuiu com 13 contos para o Observatório e cedeu ao Museu Nacional o uso de ricas colecções de aves e conchas e ainda outras colecções de minerais, rochas e conchas do Museu Real. Estes são exemplos do mecenato de príncipes portugueses à imitação, em escala reduzida, do que foi praticado pelos príncipes renascentistas…
Para além dos exemplos reais, houve alguns casos isolados de mecenato científico civil. A Sra. D. Rita de Assis de Sousa Vaz deixou um importante legado de 60 contos à Escola Médico-Cirúrgica do Porto. O Sr. Conde de Itacolumi deixou mil libras à Escola Politécnica para a compra de instrumentos. O Laboratório Nobre do Porto foi criado pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em pareceria com o Hospital Geral de Sto. António, com as sobras de um legado de Bruno Alves Nobre que faleceu em 1891. Este benemérito deixou “o importante legado de 80 contos, com a obrigação da dita Escóla custear, com doze mil reis mensaes, a educação, até completa formatura, de doze pensionistas pobres”. Um regulamento elaborado e aprovado pela Escola e pela testementeira estatuía que “as sobras annuaes que houver do rendimento do Legado Nobre serão empregadas em beneficio do ensino da Escóla Medico-Cirurgica do Porto e pelo modo que esta entender mais conveniente”, e assim nasceu o Laboratório em 1897.
No início do século XX, os governos portugueses tomaram medidas que, de alguma forma, poderiam estimular o mecenato científico, mas parece que não tiveram o sucesso esperado. Nove anos após o decreto de João Franco de 1907 que dava autonomia administrativa e pedagógica às Escolas Superiores e lhes permitia receber doações, Agostinho de Campos comentava:

Já lá vão nove anos bem contados, e não me consta nem creio que qualquer das nossas universidades, faculdades e altas escolas haja colhido de mortos ou de vivos (a não ser do estado, que é um morto-vivo muito pelintra) o mais coçado vintém de esmola e de incitamento.

Uma das raras excepções de mecenato científico das primeiras décadas do século XX foi o Instituto Rocha Cabral, fundado em 1923 e aberto em 1925. A sua fundação foi possível graças à doação de Bento da Rocha Cabral que deixou um legado de 14 mil contos em reacção às crónicas científicas de Ferreira de Mira publicadas no jornal, A Lucta, dirigido por Brito Camacho. Respeitando o testamento do benemérito, a direcção do Instituto foi atribuída ao Dr. Ferreira de Mira. Este centro de estudos de biologia médica era o único instituto de investigação de iniciativa privada existente na época em Portugal. Alguns anos mais tarde e na sequência da desvalorização da moeda durante a 2ª Guerra Mundial, o Instituto necessitou de apoios do Estado para se poder manter em actividade. Legados de muito menor importância foram feitos à Faculdade de Medicina do Porto por Assis Vaz e Alves Nobre, e à Universidade de Coimbra por Sá Pinto. Tal era a escassez das doações nas primeiras décadas do século XX que Joaquim Alberto Pires de Lima comentava em 1929: “os particulares ricos da nossa terra não compreendem a grandeza dos gestos dos ROCKEFELLER e dos CARNEGIE”.
Actualmente, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação Champalimaud e a Fundação Ilídio Pinho contam-se entre os mais importantes mecenas da ciência em Portugal. De acordo com os estatutos da Fundação Gulbenkian, os seus fins são “caritativos, artísticos, educativos e científicos”. A Fundação Ilídio Pinho tem como “principal orientação estratégica a promoção da Ciência e da Tecnologia ao serviço do Homem”. Imitando, com pouca originalidade, muitos milionários americanos, António Champalimaud criou uma Fundação para dar apoio às ciências médicas após a sua morte.
Embora a propaganda política pretenda fazer crer que o financiamento estatal para a ciência é abundante e generoso, tal não corresponde efectivamente à realidade. Um mecenato científico robusto ─ que tão importante é em países ricos como os Estados Unidos da América ─ seria para Portugal uma verdadeira bênção do céu…

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