Sunday, January 14, 2007

Cultura e Ciência em Portugal

A cultura dá a quem a possui os conhecimentos e os métodos que lhe permitem entender o mundo multi-facetado que o rodeia. Só através da cultura o homem pode ocupar, sem angústias nem receios, o seu lugar no universo dos acontecimentos, dos fenómenos, das expressões artísticas e das ideias. A cultura, pelas suas próprias limitações, não dará ao homem um completo conforto intelectual, estético e ético-moral, mas informá-lo-á sobre os limites dos seus sonhos e utopias e assisti-lo-á no alargamento desses limites.
Seguindo a evolução dos conhecimentos humanos, o conceito de cultura tem evoluído ao longo dos tempos. O homem culto da Idade Média ou do Renascimento não é comparável ao homem culto moderno. No passado, a cultura baseava-se numa educação humanista e escolástica, e materializava-se nos conhecimentos gerais de história, literatura, arte e filosofia e em noções muito básicas sobre o mundo e a natureza. Actualmente já não é culto quem não tiver conhecimentos de matemática, física, química, geologia, biologia, e das áreas científicas mais recentes como a electrónica e a fotónica.
Sant’Anna Dionísio definia cultura como “uma síntese de sciência e da arte; é uma assimilação filosófica de todas as formas de saber e sentir”. Afirmava ainda que não se devia confundir com erudição, pois “o erudito é, mesmo, em regra, a negação e a caricatura mais lamentável do homem culto”. Para se cultivar, o homem necessita, ─ nesta perspectiva moderna e global de cultura ─ de respirar eflúvios impregnados de ciência e emanados das instituições de ensino científico e dos laboratórios, centros e institutos de investigação. Para além dos valores da cultura tradicional, o homem culto possuirá os valores de tolerância, seriedade e rigor que caracterizam a ciência. Ao integrar a ciência na sua cultura, o homem tornar-se-á mais justo, equilibrado e racional.
Com o aparecimento da ciência moderna no séc. XVII, cedo se reconheceu a necessidade de integrar a ciência na cultura ou, noutras palavras, a importância do valor cultural da ciência. Desde então, houve cientistas e pensadores que achavam que o valor cultural da ciência suplantava o seu valor utilitário. Pasteur, que compreendeu bem o valor da ciência nas várias vertentes, afirmou:

A cultura das ciências na sua expressão mais elevada é talvez mais necessária ainda ao estado moral de uma nação do que à sua prosperidade material.

No dealbar do século XX, houve muitos intelectuais portugueses, incluindo cientistas, que ─ seguindo aliás uma tendência universal ─ atribuíam à vertente cultural e educativa da ciência maior importância do que à sua vertente utilitária.
Tão distintiva é realmente a ciência, que houve ilustres pensadores que afirmaram ter sido ela a única coisa valiosa que a civilização ocidental tinha produzido. Bertrand Russel (1872-1970) afirmava que a cultura europeia, exceptuando a ciência, era um puro erro, e que a espiritualidade, que tinha sido tão cultivada, desenvolvida e enaltecida na Europa, era superada pela chinesa em tudo o que havia de essencial. A literatura, a arte e as várias criações de outras civilizações têm sido equiparadas às europeias, mas a ciência é unanimemente considerada uma criação, única e singular, da civilização ocidental. A sua prática e influência estendeu-se a todo o mundo e a todas as outras áreas de actividade humana. Capaz de conhecer a realidade autónoma da Natureza a ciência transformar-se-ia, segundo o positivismo de Augusto Comte, na principal força motriz da cultura e do progresso.
Teófilo Braga, um dos grandes defensores e divulgadores do positivismo em Portugal, advogava com entusiasmo o poder superior da Ciência e do seu mais visível produto, a indústria científica. Com elas acabariam todas as arbitrariedades humanas:

Tanto a Sciencia como a Industria […] estão destinadas como consequência do seu desenvolvimento a tomarem conta do destino da sociedade substituindo as duas formas caducas e atrazadas do Poder espiritual dos dogmas, e do poder temporal das dynastias. […] Sciencia e Industria são as formas racionaes que hãode substituir esses dois poderes empiricos e abusivos que se exercem como peias, com uma acção repressiva da evolução das sociedades.

O mundo teria um futuro próspero e as sociedades humanas aproximar-se-iam da perfeição se prosseguissem os ditames do desenvolvimento científico. Se conseguisse enveredar pela via das conquistas da ciência e da técnica, Portugal teria uma grande oportunidade para inverter a sua decadência, económica, social e moral.
Esta concepção positivista da Ciência criou raízes na mente de muitos intelectuais portugueses de oitocentos. O sucesso que o positivismo teve em Portugal no fim do século XIX é reconhecido por Joaquim de Carvalho:

Depois da escolástica, nenhuma outra teorização penetrou tão extensa e profundamente no ambiente cultural português como o positivismo, entendido como filosofia nos limites da ciência.

Algumas franjas do positivismo resvalaram, porém, para terrenos movediços e lamacentos. As teorias do cientismo, de cariz materialista, e os aproveitamentos políticos que delas se fizeram, despoletaram fortes reacções não só nos meios religiosos como também em espíritos dotados de uma maior independência intelectual. Estas reacções conduziram, pelos seus próprios excessos, a um anti-positivismo irracional, propalado pelo movimento irracionalista em sectores intelectuais europeus e americanos, que teve igualmente algum eco em Portugal. Em 1927 foi lançada A Presença, a revista do movimento modernista literário português, fundada e dirigida por José Régio. Perante um certo desencanto geral sobre o valor da ciência José Régio colocava-se na crista da onda dos críticos da ciência ao escrever o seguinte:

Senhora Dona Ciência, o seu nariz é curto. E os seus olhos não vão mais longe do que a ponta do seu nariz. As suas descobertas… não foram feitas por si. Os seus códigos são provisórios ─ como sabe. As suas explicações não provam nada, porque de resto nada se prova. E o pior é que nem explicam! Se eu fôr capaz de ver, tão real e perfeitamente como vejo o meu próprio corpo, o corpo de uma pessoa inexistente ou desaparecida, ─ que me explica a ciência chamando a isso uma alucinação? E como me prova que essa pessoa que eu vejo não existe? É por meio dos sentidos do meu corpo que me apercebo do meu corpo. E é também por meio dos sentidos do meu corpo que me apercebo dêsse outro corpo … irreal. […]

Reconhecendo, apesar de tudo, alguma utilidade à ciência, José Régio remata com alguma displicência:

Resumindo: a sciência não passa duma constatação de alguns fenómenos ─ cuja utilização presta, decerto, grandes serviços ao homem. Mas essa própria constatação é provisória e contingente. Em verdade, a sciência nada pode afirmar ou negar. E só avança … através de criadores que até certo ponto a desmentem. Pode assim, por hipótese, avançar ilimitadamente ─ mas outras actividades avançarão ilimitadamente adiante dela.

Para José Régio e a geração “presentista” como Jorge de Lima “a poesia está acima dos leitores, da política, da ciência, da filosofia” … Para estes intelectuais, a ciência tinha limites e mostrava ser pouco útil para a cultura individual e colectiva.
Apesar de todo o criticismo a que foi sujeita, a ciência mostrou nas décadas seguintes toda a sua valia, tanto durante a guerra como, e sobretudo, durante a paz. Os grandes blocos políticos tentaram assentar a sua hegemonia na ciência e tecnologia.
O bem estar e qualidade de vida que a ciência lhes proporcionava não foi porém suficiente para calar os seus detractores. Na década de1980, um novo movimento irracionalista surgiu na forma de movimento pós-modernista e que teve seguidores em Portugal. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos escreveu um livro polémico intitulado Um Discurso sobre as Ciências (1987), onde afirma o seguinte:

A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia.

A força da ciência é tal que dificilmente será perturbada no seu percurso civilizacional pelas críticas pós-modernistas de um sociólogo português.
Num país cientificamente atrasado é pena que haja intelectuais que reduzam a importância da ciência à da astrologia…

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