Wednesday, January 17, 2007

As desventuras da ciência no Reino da Estupidez

Muitos pensam, com alguma razão, que a cultura científica é, ainda hoje, praticamente inexistente em Portugal. Embora as disciplinas científicas existam nos curricula do ensino obrigatório, os conhecimentos científicos rapidamente se desvanecem das mentes da maioria dos portugueses. A leitura dos poucos livros de divulgação científica é reduzida. Os princípios e os valores trazidos pela ciência, como vertente cultural, são genericamente desprezados pelos meios de comunicação social, pelos políticos e pelos cidadãos. Esta desvalorização da ciência vem de longe e a responsabilidade por esta situação deve atribuir-se às elites “ditas cultas” e não certamente às pessoas analfabetas e ignorantes. A ciência moderna, criação de mentes europeias do século XVII, foi ao longo da nossa história muito maltratada nas Igrejas, na Universidade e, em geral, nos meios cultos das várias épocas. Ela só entrou à força em Portugal ─ o país a que António Ribeiro Sanches (1699-1783) chamava Reino Cadaveroso ─ imposta pelo Marquês de Pombal com a reforma do ensino. No entanto, mal este déspota iluminado foi afastado do poder (1777), veio a “viradeira” e as forças da reacção impuseram os velhos métodos escolásticos, que aliás eram mais conformes à maioria dos professores, dos alunos e da sociedade.
Francisco de Melo Franco (1757 - 1823) ─ médico, escritor e poeta (heroico-satírico) brasileiro que estudou em Coimbra após a destituição do Marquês de Pombal ─ escreveu um livro (poema) dedicado a Portugal, intitulado o “Reino da Estupidez”, que circulou como manuscrito desde 1785 e foi impresso anonimamente em Paris em 1818, 1820 e 1821. O autor descreve a chegada ao reino da Lusitânia de cinco deuses ─ a Raiva, a Superstição, a Hipocrisia, o Fanatismo (que presidia) e a Estupidez ─ bem como os seus relatos depois de uma viagem prospectiva que realizaram na capital portuguesa. Os quatro primeiros deuses encontraram na vida lisboeta muitos seguidores o que lhes deu uma grande satisfação e foi para todos eles motivo de grande regozijo. A Estupidez reservou a sua acção para Coimbra, a cidade universitária, onde ainda se ensinava a anatomia humana demonstrando-a com a dissecação de carneiros!... Chegada à cidade dos doutores, a Estupidez pernoitou no mosteiro dos “Reverendos Cruzios” com grande regozijo destes. O reitor da universidade organizou-lhe uma procissão em que foi aclamada por estudantes e professores. Ao chegar à Universidade, todos lhe prestaram uma sentida vassalagem, todos recebendo a benção da deusa com promessas de protecção. Assim o documentou o nosso poeta:

Em paz gozai (a Deosa assim profere,)
Da minha protecção, do meu amparo.
Eu gostosa vos lanço a minha bênção;
Continuai, como sois, a ser bons filhos
Que a mesma, que hoje sou, hei de ser sempre.

Diz-se que o grande poeta e matemático José Anastácio da Cunha (1744-1787) teria contribuído para o poema. Verdade ou não, o certo é que Anastácio da Cunha foi expulso da sua cátedra na universidade, onde tinha sido colocado pela mão do Marquês, e foi acusado de heresia pela Inquisição que o condenou a prisão ─ tal como aconteceu com Melo Franco ─ acabando os últimos anos da sua curta vida como professor de matemática na Casa Pia. Após a sua morte, o curso elementar de matemáticas que aí ensinou foi traduzido para francês por um dos seus discípulos, tendo sido muito elogiada no estrangeiro esta sua obra didática.

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