Nos primeiros anos do século XVII surgiram notícias da
invenção de um poderoso instrumento com o qual se podiam observar objectos tão
pequenos que não seria possível distingui-los à vista desarmada. Vários homens
disputaram a prioridade desta invenção, o que criou algumas dificuldades aos
historiadores da ciência… Actualmente, porém, é bastante consensual que a
invenção foi realizada por volta de 1590 por Zacarias Jansen, um fabricante de
lentes que foi também falsificador de moeda! …
Logo após a
invenção de Jansen, o microscópio não despertou um grande interesse científico
mas, passadas algumas décadas, o interesse cresceu com a publicação de surpreendentes
desenhos de minúsculos seres onde se podiam ver detalhes nunca antes
imaginados. Entre os microscopistas que usaram o microscópio sucessivamente
melhorado, encontram-se Giovanni Borelli (1608-1679) e Marcello Malpighi
(1628-1694), que se notabilizaram após a divulgação das suas observações. A
obra que mais contribuiu para a divulgação da microscopia foi, porém, a Micrographia (1665) de Robert Hooke
(1635-1703), onde aparecem primorosos desenhos de cristais, insectos, cortiça, sementes
e folhas, com detalhes nunca antes observados.
O instrumento inventado por Jansen, que permitiu a
Hooke fazer estas observações, era constituído por duas lentes colocadas nos extremos
de um tubo com um determinado comprimento. Junto da primeira lente (a
objectiva) colocava-se o objecto a observar, junto da segunda (a ocular)
colocava-se o olho. Desde que a relação entre as curvaturas das lentes, ou as
distâncias focais, fosse apropriada, podiam ver-se imagens muito ampliadas. No
princípio do século XVII, o filósofo e matemático grego Giovanni Demisiani
(?-1614) sugeriu a palavra microscópio,
para designar este aparelho. Microscópio começou também a chamar-se a um
instrumento mais simples constituído por uma única lente esférica de reduzidas
dimensões e de grande poder ampliador. Para os distinguir, um tal doutor Goring
propôs, no início do século XIX, o termo engiscópio
para o microscópio de duas lentes, mas a palavra não se impôs, nem na
nomenclatura técnica nem na linguagem vulgar. Na verdade, este termo já era
utilizado no século XVIII como sinónimo de microscópio, como se pode verificar
numa brochura de 1782 intitulada Certame
Fysico dos Corpos Celestes e Terrestres, escrita pelos frades portugueses
Joaquim da Conceição, Domingos da Salvação e Manuel de Avé Maria ─ um trabalho de tese, que
apresentaram no fim dos seus estudos, no Colégio da Ordem da Trindade de Lisboa,
sob a orientação do teólogo Fr. António da Silveira. Nesta brochura, o
microscópio de duas lentes foi designado por microscópio composto; o de uma única lente por microscópio simples ─ a mesma designação que ainda hoje é utilizada.
É relativamente consensual que o microscópio simples já
era conhecido antes da invenção do microscópio composto, até porque nenhum dos
microscopistas que o usaram no século XVII reclamou a prioridade da sua
invenção… A Roger Bacon (1220–1292) foram atribuídas algumas
invenções ópticas, muitas das quais não tem sido possível confirmar historicamente.
É certo que inventou as lentes biconvexas e que as estudou, juntamente com
outras formas de lentes já conhecidas, sob o ponto de vista da óptica geométrica,
incluindo as aberrações esféricas. Não é certo, porém, que tenha inventado nem
o telescópio nem o microscópio, como alguns afirmam. Este frade franciscano faz
parte de um grupo de filósofos europeus do século XIII, conhecidos como
perspectivistas, que se dedicaram ao estudo da óptica, ou perspectiva, e que
conheceram o trabalho de filósofos árabes, como Al-Kindi (801–866), Ibn Sahl (940-1000) ou
Alhazen (965–1040). Há por isso quem afirme que a
invenção de instrumentos ópticos, como o microscópio, poderia ter sido feita
por alguns destes filósofos árabes ou até por outros filósofos árabes de
diferentes épocas.
A verdade porém é
que nunca antes da invenção do microscópio composto foram divulgados relatos de observações feitas com microscópios,
incluindo o microscópio simples. No seu livro Ars Magna Lucis et Umbrae
(1646), o Pe. Atanásio Kircher (1602-1680) faz referência ao microscópio
composto e apresenta diagramas de microscópios simples a que chamou “smicroscópios”,
que mais se parecem com lupas biconvexas. Estes “smicroscópios” já eram usados em
observações realizadas por François Fontana, desde 1618, e por J. Stellutin,
desde 1625. No entanto, as observações mais famosas, que despertaram a atenção
de toda a comunidade científica de seiscentos, foram realizadas pelo ilustre
microscopista holandês Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) com microscópios
simples que ele próprio construiu. Nesta época, devido à incapacidade de
eliminar as aberrações cromáticas, a qualidade de imagem de um microscópio
composto era inferior à de um microscópio simples sempre que as ampliações eram
elevadas.
As lentes que constituem os microscópios eram já
conhecidas na Antiguidade, não havendo no entanto certezas sobre o uso que lhes
era dado; tanto poderiam ter sido usadas como lupas, lentes ustórias ou simplesmente
objectos decorativos. As chamadas lentes de Tróia, que
fazem parte do tesouro descoberto entre 1872 e 1890 por Heinrich
Schliemann (1822–1890), são lentes de
cristal de rocha (quartzo) transparente, desbastadas e polidas entre 2600 e
2450 a.C.. Funcionando como lupas, estas lentes apresentam ampliações de cerca
de duas vezes. Lentes encontradas em Creta e fabricadas em 1400 a.C. têm um
poder ampliador de onze vezes. Com estas
ampliações relativamente modestas, as observações microscópicas ficam muito
limitadas. Para aumentar a ampliação, deve diminuir-se o raio de curvatura das lentes
o que equivale a diminuir a sua distância focal.
Perante as muitas
histórias, narradas por autores antigos, sobre a existência de mini e
micro-esculturas, surge a dúvida se não teriam sido usadas lentes de grande
ampliação, na Antiguidade. Recorramos ao texto manuscrito do Tractado da Optica (1714) do Pe. Inácio Vieira (1676/8-1739)
─
um professor de matemática na Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão em
Lisboa ─ que, a propósito de
pessoas capazes de esculpir objectos de pequeníssimas dimensões, afirmava:
Alguñs
hà taõ perspicazes, que descobrem couzas muito meudas como por exemplo
Calicrates [séc. V a.C.], o qual fazia obras taõ meudas em marfim, como
formigas, moscas, etc, que os outros naõ podiam devizar, nem destinguir as suas
partes, que certamente cada huã destas couzas tinha distintas. Mirmèsedes fazia
huã carrossa com quatro cavallos que se podia cobrir com a àza de huã mosca, e
huã nâo à vella com todas as suas partes, que se cobria com a aza de huã
abelha. Conta tambem Cisero [106-43 a.C.], que vira os livros de eliada de
Homèro, que saõ 24 escritos em letra taõ meuda, que se fexavaõ todos na casca
de huã nòs, e hũ Autor mais moderno vio o credo, e o principio do Evangelho de
S. Joaõ escritos em hũa moeda como hũ vintem; e vira o caroço de sereja e nelle
esculpido com tal arte hũ cestinho com doze pares de dados, que era hũa
admiraçaõ; e isto antes de haver os vidros, com que se multiplicaõ os objetos.
O Pe. Inácio Vieira
sustenta implicitamente que estas obras eram feitas a olho desarmado! …
Actualmente, pensa-se que estas miniaturas, se alguma vez existiram, não
poderiam ter sido feitas doutra forma senão com uma lente ampliadora.
As histórias ou
lendas sobre os mini objectos descritos pelo Pe. Inácio Vieira e por muitos
outros autores mostram o fascínio que este tipo de objectos, reais ou imaginários,
sempre causou às pessoas. Este mesmo fascínio poderá explicar o interesse que os
primeiros microscópios despertaram na Europa, ao ponto de serem utilizados nos serões
das cortes para diversão da família real e dos nobres.
Para obter
ampliações de algumas centenas de vezes, Leeuwenhoek usou lentes
esféricas de vidro com diâmetros da ordem de 1 mm. Não existem documentos
históricos que provem a existência destas lentes minúsculas na Antiguidade ou
na Idade Média, embora não haja razões para que não tivessem sido produzidas,
mesmo que inadvertidamente, nas oficinas vidreiras de egípcios, romanos ou
árabes. Depois destas mini lentes terem aparecido, integradas nos microscópios
simples, começaram a ser desvendados os segredos do seu fabrico. Numa tradução portuguesa
(1818) do livro Secretos de Artes liberales, y
Mecanicas de Bernardo Monton, publicado pela
primeira vez em 1734, pode ler-se o segredo “Para fazer hum Microscopio com
huma gota de agoa, ou de cristal”:
Toma hum pedacinho de chumbo, que adelgaçarás com hum martello,
tudo quanto quizeres; e com huma agulha grossa farás no meio desta prancha hum
buraquinho, levantarás hum beicinho no redor de todo o chumbo; e no buraquinho
lançarás huma gota de agoa (na qual tenhaõ estado em infuzaõ flores secas, ou
casca de alamo, freixo, pinheiro, &c. por dous, ou tres dias) olharás ao
través de huma véla, ou outra luz, e verás muitas sevandijas, que nunca
cessaraõ de mover-se, e só pararaõ, quando a agoa perder a sua figura esferica.
Se quizeres o Microscopio de cristal, seja do fino; o grosso do buraquinho,
acima dito, ou alguma couza mais; e este porás sobre o pavio da véla, que se
fundirá, e deixa-o cahir no buraquinho, que fizestes, ou em outro de hum
papelaõ, ou carta de jogar, &c. e que fique esferico; porque de outra sorte
se naõ póde aproveitar. O Microscopio de agoa só aproveita para na occasiaõ; o
de cristal para sempre.
Este modo de construir microscópios simples
é ainda hoje proposto em livros de ciência experimental para crianças e jovens.
Efectivamente, de uma forma simples, barata e didáctica, pode obter-se um
poderoso microscópio com uma simples gota de água…
Foi grande o
impacto que as observações microscópicas tiveram sobre a ciência e as
mentalidades no século XVII. O homem, rodeado pelo mundo antropocêntrico que
ele próprio construíra à sua medida, teve alguma dificuldade em aceitar tanto o
macrocosmos, exposto com o telescópio, como o microcosmos, revelado pelo microscópio.
Nos meios filosóficos escolásticos, surgiram dúvidas sobre a realidade das
imagens produzidas por estes instrumentos. Chegou a pensar-se que tais imagens não
passavam de ilusões criadas ou pelos olhos ou pelos próprios instrumentos. Nos
meios populares, onde grassava a ignorância, as imagens do microscópio causaram
espanto e logo surgiram explicações supersticiosas que, perante as evidências, foram
prontamente rejeitadas. Uma história contada por Pe. João Baptista de Castro
(1700 ––1775) revela bem a reacção popular:
Faz
muyto ao intento aquelle caso que sucedeo ao famoso Jesuita Adão Tannèro.
Achava-se este P. lutando cõ a ultima enfermidade, & nas ancias da agonia,
em hum pequeno lugar da sua Patria Inspruck, quando os ministros de Justiça
vierão registar seu apozento, para porem em deposito tudo o que nelle achassem.
Era aquelle Padre hum dos mais sabios do seu tempo, singularmente curioso;
& entre muytas cousas prodigiosas que lhe acharão, foy hum pequeno vidro,
que incluia hum formidável monstro em fórma de dragaõ, negro, horrivel, &
medonho. Divulgou-se a fama, & noticia do invento; concorreo gente para ver
huma quasi impossivel, qual era ser a cousa contida, mayor que o continente;
& assentando todos, que aquelle artefacto não podia ser natural,
concordarão que era hum demonio visivel, & o Padre algum insigne
feyticeyro; & por este acordão esteve o Padre sentenciado a mandarem-no
enterrar em lugar profano: atè que hum dos circunstantes que naquelle ponto havia
chegado, homem de experiencia, conhecendo o artificio com que o vidro era
feyto, abrio-o, & soltou delle hum pequeno, & vil bichinho, que tal
microscopio encerrava. Ficarão todos admirados, vendo que por meyo de hum vidro
se aumentavão tanto as cousas.
Homens da Igreja,
menos receosos das novas tecnologias e mais preocupados com a moralidade, tentaram
usar o novo instrumento para a promoção da moral cristã. Nas palavras do Pe.
Manuel Bernardes (1644-1710) da Nova Floresta:
Ha
oculos lavrados em tal fórma, que as cousas pequenas, representaõ como grandes:
e outros pelo contrario, que as cousas grandes, representaõ como pequenas. A
malicia, ou ignorancia humana tambem usa desta optica: com os primeiros oculos
vê as faltas das pessoas ordinarias, a quem despreza: com os segundos as das
pessoas sublimes de quem depende.
Depois da
invenção do microscópio, transformou-se a visão científica que o homem tinha do
mundo. Ideias que vinham da Antiguidade e se consolidaram na Idade Média, como
a geração espontânea, dissipavam-se perante a descoberta de ovos microscópicos
geradores de insectos, cuja existência nunca antes se conhecera. Com a descoberta das células e das bactérias, dos
protozoários e dos espermatozóides, o mundo do homem tornava-se claramente
dependente de um universo invisível que nunca antes fora sequer imaginado. Com
estes instrumentos, a autoridade dos mestres antigos ruía estrondosamente, e
outras bases foram necessárias para a construção de um novo edifício que
espelhasse uma imagem mais fiel da natureza.
Actualmente, há microscópios ópticos e não-ópticos, que
funcionam de acordo com os mais diversos princípios físicos e que se
transformaram em instrumentos imprescindíveis na ciência e nas tecnologias
modernas. Tal como no passado, continuam a ser uma extensão dos nossos sentidos,
permitindo-nos ultrapassar as nossas naturais limitações na observação da natureza.
Desde a invenção de Zacarias Jansen, os avanços realizados na microscopia foram
enormes ─ da observação das asas das abelhas passou-se à análise da estrutura
dos átomos.
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