O Que Ha De Ser o Mundo no Anno Tres Mil é o título de um livro publicado em Lisboa em 1859, cujo autor não declarado é Sebastião José Ribeiro de Sá (1822-1865), jornalista, fidalgo, comendador, e representante oficial do Estado no país e no estrangeiro. Este livro é uma versão adaptada ou imitação, destinada aos leitores portugueses, do livro de Émile Souvestre Le Monde Tel qu’il Sera publicado em Paris no ano de 1846. Considerado um pioneiro da ficção científica, Souvestre antecipou-se a Júlio Verne cerca de 20 anos.
Enquanto que na obra de muitos autores o progresso científico e tecnológico representa progresso social, ético e moral, a sociedade descrita neste livro beneficia de um extraordinário desenvolvimento tecnológico mas rege-se por princípios subordinados ao dinheiro fácil, aos lucros chorudos e à exploração e especulação.
Ribeiro de Sá era um entusiasta do desenvolvimento tecnológico que defendia aliás para o seu país e, por isso, há quem se interrogue porque razão ele terá escrito este livro com uma imagem tão negativa ligada à tecnologia. No século XIX, tal como hoje, as novas tecnologias levantavam receios e medos não porque elas fossem intrinsecamente maléficas mas porque a ambição humana nisso as poderia transformar. Provavelmente, Ribeiro de Sá terá tentado alertar para essa possibilidade ridicularizando neste livro os valores por que se regia a grotesca sociedade do ano 3000.
A história que se conta é simples. Um jovem casal parisiense do séc. XIX deixa-se seduzir pelo desejo de viver no futuro. Os dois jovens aceitam ser adormecidos por Sir John Progresso e por ele mesmo reanimados centenas de anos mais tarde, o que efectivamente acontece no ano 3000 na presença do Sr. Manuel Fogaça, comerciante de antiguidades e dono da Fogaça & Cª, que explorava o mundo antigo à procura de velharias….
Mauricio e Marha, assim se chamavam os jovens amantes, encontram uma sociedade organizada num estado global, a Republica dos Interesses-Unidos, cujo centro civilizacional se achava na Ilha do Negro Animal, a que antigamente se chamara Taiti, e cuja capital era a cidade Sem Egual… Nas suas muitas viagens e visitas foram acompanhados pelo ilustre académico o Sr. Universal a quem foram vendidos pelo Sr. Fogaça, e que entre muitos cargos era “vogal de quatorze mil setecentas e trinta e quatro comissões, das quaes dois terços, como a maioria das comissões em Portugal, nunca se tinham reunido”.
Em contraste com os trajes simples e muito económicos dos exóticos, feios, grotescos e monstruosos cidadãos da Republica dos Interesses-Unidos, os meios de transporte ─ tendo como força motriz o vapor ─ eram sofisticados e rapidíssimos. Em terra viajava-se por túneis em cápsulas lançados por canhões e no mar em submarinos, com formas de peixes, que por vezes naufragavam devido aos choques com gigantescos cetáceos que habitavam o fundo dos mares. Nas cidade Sem Igual viajava-se pelo ar usando balões e sapatos a vapor. As viagens eram tão rápidas que “viajar consistia em partir e chegar”. O cavalo constituía para as altos dignitários do governo um nobilíssimo meio de transporte porque estes não precisavam de se apressar para fazer os seus lucrativos negócios.
Mauricio e Marha, as duas relíquias vivas do passado, admiraram-se com a casa do Sr. Universal, totalmente automatizada desde a cozinha até aos quartos. Tudo se podia controlar com alavancas que comandavam as máquinas que tudo faziam para a comodidade dos cidadãos abastados. O jornal mais lido da Republica, a Grande Peta, era distribuído – tal como o correio, em geral ─ em canalizações por vácuo desde o centro de produção até às mãos dos leitores que podiam seleccionar as partes que lhes interessava ler ─ uma espécie de Internet mecânica controlada pelo vapor …
Todo o serviço que não fosse feito por máquinas era um luxo que se pagava caríssimo. A conta de um serviço de copo de água pedido pelo Sr. Universal numa estalagem era elucidativamente explicativa: “por tres comprimentos do guarda-portão com alabarda $240, pelo criado com cadêa de oiro $400, pelo criado que abriu a porta da sala $080, aluguer da lista de aguas $040, bandeja $030, garrafa $035, copo $045, agua da fonte [a escolhida pelo Sr. Universal] 1$000, meza e bancos [para a pessoa servida e acompanhantes] $800, serviço $400, total 3$070”! …
Os vendedores dos mais extravagantes produtos apinhavam-se junto dos possíveis compradores, não descansando enquanto a sua insistência não tivesse algum resultado financeiro que se visse. O Sr. Palafox vendia aos vaidosos narizes postiços, aos pastores protestantes bíblias e aos gulosos receitas de chocolate, mel e açúcar, falsificadas com produtos tóxicos. Através das suas observações o Sr. Telescópio tinha descoberto habitantes na Lua. De imediato a empresa dos novos telégrafos eléctricos elaborou um projecto comercial para estabelecer contacto com os "lunáticos". O Sr. Palafox tentava vender acções desta empresa de alta tecnologia, apresentando aos possíveis investidores um folheto publicitário: “Telegraphos trans-aereos ─ ás pessoas que tem dinheiro disponivel ─ capital social: cem contos de réis ─ lucro seguro: dez mil contos de réis”…
Dominada exclusivamente pelo interesse material, a Republica dos Interesses-Unidos cuidava das crianças desde o nascimento na Casa da Mama, onde o leite era artificial e as mamas maternais eram substituídas por máquinas a vapor. As crianças ocupavam a sua gaiola até à idade da desmama, altura em que lhes eram feitos testes frenológicos para avaliar as suas capacidades e vocações e rigorosamente definir a educação que lhes deveria ser dada na Universidade das Vocações Unidas.
Do ensino popular “retirava-se tudo quanto não tivesse applicação pratica e immediata” ensinando-se a “arithmetica” para saber fazer contas e “um resumo do Codigo Commercial” para saber negociar. Os operários velhos acabavam num asilo “onde aproveitavam o resto da sua força até ao momento da agonia”. Os seus cadáveres eram “entregues ao escalpelo dos estudantes de cirurgia por um preço modico, pois assim como o berço dos filhos não dava cuidado aos paes, tambem a sepultura dos paes não importava aos filhos”.
A cultura tinha também o seu preço (tal como hoje em Portugal ! …). O Sr. Pretorio, o director da Grande Peta, não podia ser mais claro:
Na capital da nossa republica a bibliotheca nacional é para ser sustentada, e não gosada pelo publico […] Haverá tres seculos que os empregados trabalham no cathalogo, classificam cem volumes por mez, e recebem mil dos depozitos para o mesmo effeito. O edifício já esteve para abater com o peso, e se não fossem os ratos e os alfarrabistas emprezarios dos caminhos de ferro, não estaria aliviado da parte do pezo que ia causar a sua ruina. A policia prohibe a entrada das bengalas e chapeos de chuva e auctorisa a saida de livros.
Portugal no ano 3000 era uma região atrasada da Republica dos Interesses-Unidos. Segundo o Sr. Peregrinus que a visitara, esta província era habitado por portugueses anões, pois “o egoismo e a inveja foram-lhes encolhendo o corpo, à proporção que amesquinhavam a alma; e a raça portugueza ao cabo de quatorze seculos fizera uma realidade da ficção de Gulliver”. Um anão português teria explicado ao Sr. Peregrinus que a sua pequenez era uma degenerescência da raça, visto que já no século XIX “não podiam ás vezes dois, nem mais homens, com as armaduras de alguns dos seus reis ou antigos heroes”.
Neste Portugal do ano 3000 “o systema de governo era anarchico, e a liberdade era livre. Cada um fazia o que queria e sobrava-lhe tempo para se divertir”. “A instrucção publica tinha grande desenvolvimento. Em cada rua havia duas aulas criadas por lei”. “O commercio prosperava pela usura”. O Artº 1 da Lei dos Impostos era claro: “todo e qualquer cidadão, de qualquer sexo, idade ou condição, macho ou femea, maior ou menor, rico ou pobre, é obrigado a contribuir forçadamente dez vezes por mez com dez réis para a caixa do imposto nacional”. E assim se arrecadava para os cofres do Estado uma receita anual de 37,707,442,800 (réis).
Depois de conhecerem esta civilização da Republica dos Interesses-Unidos “onde o homem se tornara escravo da machina e o interesse substituira o amor” e onde os “doidos” eram os únicos que ainda tinham alguns resquícios dos valores humanos do séc. XIX, Martha a Mauricio “estavam aflitos”. Depois de adormecerem, tiveram uma visão em que Deus, desgostoso com os abusos dos homens, resolveu enviar três anjos para aniquilar a Terra. “Viram abater os porticos, transbordar os rios, os incendios rolarem sobre o mundo em ondas de fogo, e o genero humano fugir da destruição geral”.
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