Quando tanto se diz sobre os inconvenientes do consumo
excessivo do açúcar é bom lembrar que, noutras épocas, este produto não só era
raro e caro mas também era considerado um bendição para a humanidade. O
processo de preparação do açúcar nos engenhos brasileiros foi descrito de forma pitoresca pelo padre jesuíta
italiano André João Antonii, no Cap. XII da sua obra Cultura e Opulencia do Brazil
(1711):
É reparo singular
dos que contemplam as cousas naturaes, ver que as que são de maior proveito ao
genero humano não se reduzem á sua perfeição sem passarem primeiro por notaveis
apertos: e isto se vê bem na Europa no panno de linho, no pão, no azeite e no
vinho, fructos da terra tão necessarios; enterrados, arrastados, pizados, espremidos,
e moidos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o
vemos na fábrica do assucar, o qual desde o primeiro instante de se plantar,
até chegar ás mezas, e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que
o comem, leva uma vida cheia de taes e tantos martyrios, que os que inventaram
os tyrannos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao imperio
do Creador, deu liberalmente canna, para regalar com a sua doçura aos paladares
do homem; estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram
contra a mesma canna, com seus artificios, mais de cem instrumentos, para lhe
multiplicarem tormentos e penas.
Por isso
primeiramente fazem em pedaços as que plantam, e as sepultam assim cortadas na
terra. Mas ellas, tornando logo quasi milagrosamente a ressuscitar, o que não
padecem dos que as vêem sahir com novo alento com novo alento, e vigor? Já
abocanhadas de vários animaes; já pizadas das bestas; já derrubadas do vento; e
enfim descabeçadas e cortadas com fouces. Sahem do cannaveal amarradas; e oh
quantas vezes antes de sahirem d’ahi, são vendidas! Levam-se assim presas, ou
nos carros, ou nos barcos á vista das outras, filhas da mesma terra, como os
réus que vão algemados para a cadeia, ou para o logar de supplicio padecendo em
si confusão, e dando a muitos terror. Chegadas á moenda, com que força e
aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substancia?
Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com
que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto
humor sahiu de suas veias, e quanta substância tinham nos ossos; tratea-se, e
suspende-se na guinda; vai a ferver nas caldeiras, borrifado para maior pena
dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, para fartar ás bestas e aos
porcos; sahe do parol escumando, e se lhe imputa a bebedice dos borrachos.
Quantas vezes o vão virando, e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas,
depois de passado por assadores, o batem com batedeiras, experimentando elle de
taxo em taxo o fogo mais vehemente; ás vezes quasi queimado; e ás vezes
dasafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem
as bateduras nas temperas; multiplica-se a agitação com as espatulas; deixa-se
esfriar como morto nas fôrmas; leva-se para a casa de purgar sem terem contra
elle um mínimo indício de crime; e n’ella chora furado, e ferido, a sua tão
malograda doçura. Aqui dão-lhe com barro na cara; e, para maior ludibrio, até
as escravas lhe botam sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lagrimas por
tantos rios, quantas são as bicas que as recebem: e tantas são ellas, que
bastam para encher tanques profundos. Oh crueldade nunca vista! As mesmas
lagrimas do innocente se põem a ferver, e a bater de novo nos taxos; as mesmas
lagrimas se destillam á força do fogo em alambique; e quando mais chora sua
sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a
lançar-lhe em rosto as lavagens. Sahe d’esta sorte do purgatorio, e do carcere,
tão alvo, como innocente; e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres,
para que lhes cortem os pés com facões; e estas, não contentes de lh’os
cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhes
fazer os mesmos pés em migalhas. D’ahi passa ao ultimo theatro de seus
tormentos, que é outro balcão maior e mais alto; aonde exposto a quem o queira
maltratar, experimenta o furor de toda a gente sentida, e enfadada do muito que
trabalhou andando atraz d’elle; e, por isso, partido com quebradores, cortado
com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos
negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes, quantos são os que
querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que
pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos gravissimos, assim
como não tem conta, assim não ha quem possa bastantemente pondera-los, ou
descreve-los. Cuidava eu, que, depois de reduzido elle a este estado tão lastimoso,
o deixassem; mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pizarem
com pilões, nem de lhe darem na cara, já feita, com um páu. Pregam-no
finalmente, e marcam com fogo o sepulchro, em que jaz: e assim pregado, e sepultado,
torna por muitas vezes a ser vendido, e revendido, preso, confiscado e
arrastado; se se livrar das prisões do porto, não se livra das tormentas do
mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e
vendido entre christãos, como arriscado a ser levado para Argel entre mouros.
E, ainda assim, sempre doce, e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao
paladar dos seus inimigos nos banquetes, saude nas mesinhas aos enfermos, e
grandes lucros ao senhor do engenho e aos lavradores, que o perseguiram, e aos
mercadores que o compraram, e o levaram degradado, nos portos; e muito maiores
emolumentos á fazenda real nas alfandegas.
(Revista
de Chimica Pura e Applicada, Ano 10, Vol. X, 1914, pp. 414-416)